Itália, viagem
Diário

Memórias de viagens na infância (ou o que resta delas)

Repetindo com minha filha os conceitos das páginas dos livros de escola, vira e mexe acontece de estudarmos sobre a cultura de países que ela já visitou. Entre uma pausa e outra sublinho…O templo é aquele no alto da Acrópole….O pintor foi o tema daquele laboratório artístico…

Do outro lado, silêncio constrangedor.  Como assim, não lembra?

 Só consigo pensar no calor, do pedaço de pizza que comemos ou que vestia uma jaqueta cor–de-rosa.

Procuro as fotos para ela tentar resgatar as lembranças daqueles dias incríveis, mas renuncio diante da evidência (pseudocientífica) que a memória de uma criança é seletiva.

férias na Itália

Como explicar a ela que viajar é preciso e que até a metade da década de 50 o turismo era um privilégio de poucos italianos? Em 1948, o artigo 36 da Constituição declarava que o trabalhador tem direito ao repouso semanal e a férias anuais retribuídas, e não pode renunciar a elas.

Se a Itália fosse uma mãe e perguntasse aos filhos sobre as suas recordações de viagem, será que eles lembrariam dos efeitos do boom econômico da década de 60? Cidades que esvaziavam-se com a chegada do verão. A Fiat carregada até o último centímetro. Seis pernas sobre duas rodas. Oito em um banco projetado para apenas duas pessoas. Homens com regatas brancas inconciliáveis com a praia. O aperto entre espreguiçadeiras, raquetes e o refratário com a lasanha ainda quente. O luxo de um sorvete à beira mar.

Itália nos anos 60

Fiquei pensando nas minhas próprias e longínquas recordações de viagem e descobri que elas nasceram antes mesmo que viajasse pela primeira vez. A primeira coisa que me veio em mente foi meu avô paterno, imigrante espanhol de sotaque inconfundível que acompanhava os jogos do Corinthians com a rádio colada no ouvido. Em sua poltrona de couro ele me pegava no colo e, enquanto aquele pezinhos com Congas azuis agitavam-se de um lado para o outro, me contava de suas lembranças de Cáceres. Ele, a bordo de uma bicicleta na Espanha em plena guerra. O aroma de pão que acaba de ser assado. O único sapato consumido. Os bolsos vazios. A saliva que desce no estômago murmurante.

Com o tempo, a vontade de descobrir outros mundos cresceu com os cartões postais de meu pai. Muitos de meus dias de infância foram pautados pela espera do carteiro. O latir do cachorro e o som metálico da caixa de correio anunciavam triunfalmente a chegada de uma imagem da selva amazônica, das cores do mercado de Ver-o-Peso ou dos azulejos de São Luís do Maranhão. Cada selo ou carimbo era minuciosamente analisado. Cada imagem era descrita segundo o nosso alfabeto particular.

Como foi na prova? Essa era uma pergunta discreta que só eu, que tinha aversão à matemática, conhecia bem o peso.

Itália, cartão postal

Cada vez que meu pai regressava de uma viagem – para o desespero de minha mãe – sua mala continha um mundo. Um único souvenir não era suficiente para traduzir a atmosfera de um lugar. Para um coração andarilho, é inútil unir as inúmeras peças de um quebra-cabeça. Aquelas malas abarrotadas me ensinaram que nenhuma terra nos pertence, mas o que de nós ninguém tira são os momentos vividos nela, o contar histórias.

Nos nossos acampamentos, nas nossas muitas viagens pelo Brasil, meus pais me ensinaram que a beleza do mundo está na sua diversidade. Esse valor ficou guardado em mim, na vontade de explorar outras terras, na garota que trocava qualquer tarde brincando para escrever cartas aos seus pen-pals, amigos por correspondência pelos quatro cantos do planeta. Na adolescente que convenceu os pais a hospedar uma intercambista neozelandesa.

Hoje, como mãe, é a minha vez de pegar pela mão, decidir o que é lícito ou não mostrar, explicar o respeito pelas diferenças, surpreender com o inesperado, incentivar a descoberta. A minha esperança é que cada lugar visitado, mesmo aqueles de nossa própria cidade, possa nutrir um depósito de recordações composto por imagens, cheiros, emoções…

Às vezes acontece de eu ter a sensação de semear ao vento, até momentos como aquele em que minha filha me conta que pediu para que um colega de classe, de origem chinesa, lhe ensinasse palavras em seu idioma ou sobre uma prova de arte onde descreve seu quadro preferido, A noite estrelada. – Era uma obra de Van Gogh, certo mãe?

Alívio. Confirmo que nenhuma viagem é em vão, nem mesmo aquelas realizadas na primeira infância, e que a sensação mais bela é sempre aquela da viagem que está por vir.

 

 

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