refugiados na Europa
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O dia em que prófugo transformou-se em fantasia de Carnaval

No último final de semana foi realizada a cerimônia de inauguração do Carnaval de Veneza, mas essa não foi a notícia protagonista das manchetes de muitos jornais italianos.

O colosso Amazon anunciou, por pouco mais de 24 euros, a venda on-line de fantasias infantis de prófugos e, em poucas horas, a polêmica sobre essa medida assumiu proporções gigantescas.

Apesar de ter evidenciado que as roupas referiam-se aos imigrantes do imediato pós-guerra, muitos consideraram a iniciativa inoportuna já que o atual momento histórico é caracterizado por inúmeras tragédias envolvendo refugiados e prófugos.

Carnaval na Itália

Em minha carreira jornalística aqui na Itália tive a chance de colaborar com mais de um órgão de imprensa especializado na cobertura de notícias relativas à imigração.

Ouvi muitas histórias. Nem todas com um final feliz. Todas elas ainda estão guardadas na memória.

A mãe albanesa que para fugir do comunismo pagou uma travessia de barco mas foi jogada no canal de Otranto, na região da Puglia. Nadou com a filha de poucos meses colocada dentro de um moletom com zíper até alcançar a terra firme.

O cidadão sudanês que viu sua própria mãe enforcada em uma árvore e ainda hoje sofre de insônia.

O ucraniano que em seus país de origem era reitor de uma universidade e na Itália trabalha como pintor, dividindo um quarto repleto de beliches com outros compatriotas.

O afegão que depois de dois turnos de trabalho ilegal passa as noites memorizando palavras do dicionário da língua italiana.

A somali que deu a luz a um bebê sob as bombas do céu de Mogadíscio.

Uma família inteira de sírios despejados e sem amparo.

Conheci até a rainha de uma pequena cidadã do Quênia que na Itália trabalhou como empregada doméstica.

Entrevistei várias pessoas que perderam parentes no grande êxodo da Albânia nos anos noventa.

Observando as fotos que a imprensa publicou na época a cada rosto das centenas de pessoas que ocupavam navios imensos pode ser facilmente confundido com o pixel de uma imagem.

O número de pessoas era tanto que era fácil defini-las como uma ameaça incontornável e dar a elas o rótulo de prófugos.

Esquecemos que cada fragmento aparentemente anônimo daquelas imagens representava um ser humano, uma história única.

A Europa está simbolicamente repleta de tantos Mohamed, Rosario, Grzegorzou ou Omar.

A questão é que muitas vezes o medo do diferente é mais forte do que a possibilidade de diálogo.

Não é comprando fantasias de Carnaval de prófugos ou adotando simplificações que nossos filhos entenderão o verdadeiro drama de quem não imigra por escolha.

A realidade está ali, diante de nosso nariz.

Em grandes avenidas da periferia de Roma é fácil cruzar com dezenas de imigrantes clandestinos que ocupam as calçadas, bem cedinho, no frio de janeiro, esperando que alguém possa recrutá-los para um dia de trabalho.

Filas de cidadãos alinhados em uma vitrine invisível. Filas de seres humanos vistos do conforto do seu carro como braços robustos dispostos ao trabalho pesado.

Minha filha tem uma colega muçulmana e nunca evidenciou nenhuma diferença entre elas.

Ela jamais fez observações sobre o fato de sua mãe usar um véu e a respeita pelo ser humano que é.

Superar o medo. Cruzar fronteiras imaginárias. Conhecer-se reciprocamente.

Isso sim diminui a distância e explica aos nossos filhos quem são aqueles classificados como prófugos.

Credits fotos: pixabay.com e wikipedia

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