viagem interior
DiárioSexto Sentido

Malas prontas para uma viagem interior

A mala preta de rodinhas estava ali, estacionada. Cada vez que entrava no quarto era como se ela me lançasse um olhar inquisitório e deixasse subentendida a pergunta que há dias aguardava uma resposta. E aí, quando partimos?

Por ironia, para personalizá-la, durante a minha última viagem havia acrescentado ao trolley uma tag com a escrita “o meu novo lugar favorito”. Só que dessa vez o cenário – não propriamente escolhido – para uma permanência fora de casa não era um cartão postal de tirar o fôlego, um mar cristalino, colinas penteadas ou montanhas cobertas de neve.

Cada vez que o telefone tocava surgia um nó na garganta. Será que é essa semana? Até que finalmente me comunicaram a data em que deveria me apresentar no departamento de neurocirurgia de um dos maiores hospitais romanos.

Antes de “partir”, inicialmente, eu que sempre fiz do planejamento um estilo de vida, coloquei no topo da lista de prioridades tarefas como fazer antecipar a redação de novos posts, fazer compras, deixar comida suficiente para o gato, justificar possíveis ausências da filha na escola, separar roupas e objetos pessoais que poderiam ser úteis nos dias longe de casa. A mente humana é capaz de adotar inúmeros gatilhos para se desvencilhar das preocupações.

Eu queria mesmo era ter certeza que a cirurgia marcada fosse só um parêntese e que logo voltaria à rotina.

Na manhã marcada, às oito horas em ponto estávamos diante da porta de um departamento sinônimo de medo e de esperança para tantas pessoas que trocam a comodidade de seus lares pelo desconhecido.

Horas de jejum até que uma enfermeira autorizou a minha entrada em um quarto compartilhado e me identificou com uma pulseira. Um nome. Um número. Um código de barras.

A primeira sensação é aquela de entrar em um mundo paralelo e recusar-se a encontrar semelhanças, a criar vínculos, a admitir que algo me acomuna aos outros pacientes. Não quero usar pijamas porque não me considero doente. Prefiro não deitar na cama porque até então podia ficar em pé. Não me esforço para comer pratos sem sal e sem sabor porque, espero, dentro de poucos dias, voltarei a cozinhar aquilo que gosto.

Engano o tempo com a leitura de jornais e revistas. Passo os olhos pelas páginas de um romance sem conseguir absorver qualquer palavra, sem recordar nomes de personagens.

O tempo no hospital possui uma cadência peculiar. É ritmado pelo constante ir e vir de médicos e anestesistas. Por comprimidos a serem engolidos. Pelas injeções a serem aplicadas. Pelo lento gotejamento do soro. Pelas refeições anônimas servidas em horários improváveis para a fome humana. Pelo oscilar da febre. Pela intimidade forçada com enfermeiros que você espera não encontrar no dia seguinte.

A vida segue como o frame congelado de um filme. O único contato com o mundo externo é uma janela empoeirada da qual é possível avistar carros que vão e vem. Furgões que descarregam lençóis limpos que exalam aroma de cloro.

Os ponteiros do relógio deslizam lentamente até que às sete da noite do dia seguinte eu seja chamada para a sala cirúrgica. Um frio intenso, quase polar, se agarra à pele e cria um nevoeiro nos pensamentos. Uma breve troca de palavras de cortesia com os anestesistas e em seguida a escuridão total.

Acordo depois de horas na UTI, com a vista confusa, vertigens, tampões no nariz, o corpo enfraquecido. Reconheço os rostos de meu marido e minha mãe, que esforçam-se para mimetizar as lágrimas. Foi tudo bem! Uma frase com efeito mais poderoso e dopante do que a serotonina.

O dia seguinte será aquele do aniversário de minha mãe e, involuntariamente, quem recebeu um presente fui eu, apesar de tudo. Devo à minha família e a tantos amigos queridos a força, a energia, a vitalidade que me transmitiram.

Recebi doses generosas de amor, em todas as suas formas. Na companhia das horas passadas juntos em um quarto estéril. Nas inúmeras mensagens. Na corrida para enfrentar o trânsito e chegar em tempo para o horário de visitas. No conciliar casa, trabalho e escola. Na insistência para engolir a comida quando respirar era já um esforço. Na tentativa de encontrar a melhor inclinação para a cama. Na capacidade de não sublinhar a minha palidez. Na discussão com o médico diante da hipótese de adiar uma cirurgia para a qual já havia me preparado psicologicamente. No abraço inesperado capaz de conter um mundo. No refúgio de um olhar.

Os dias seguintes foram de extrema fragilidade física. A verdade é que o corpo, apesar de forte, precisa de tempo para conquistar um novo equilíbrio.

Volto para casa depois de uma semana no hospital com cicatrizes que não são vistosas no corpo, mas na alma, e a certeza que a vida é capaz de dar piruetas que nem sempre a gente consegue acompanhar.

As pernas ainda não tem a força para que fique em pé. O estômago recusa o alimento. Náuseas são cotidianas. A cabeça que parece flutuar. Impossível realizar qualquer tarefa cotidiana e perto de um colapso injeções de cortisona me sustentam.

Minha mãe, que esperava conseguir adiar a data de seu retorno ao Brasil, encontra diante de si um muro virtual. Fizemos inúmeras tentativas de trocar a passagem Alitalia,  comprada no Brasil. O número telefônico do serviço de contato com a companhia é a pagamento (0,64 centavos por minuto de uma linha fixa) e cada telefonema com um interlocutor da companhia durava em média 25 minutos.

Nenhum funcionário ou supervisor soube fornecer indicações claras e unívocas sobre o iter obrigatório para mudar a data de seu retorno ao Brasil.

Inicialmente fomos informados que tratando-se de um problema de saúde envolvendo um parente próximo poderíamos enviar um certificado médico declarando a necessidade que eu tivesse o seu suporte, mas apesar de toda a documentação enviada não tivemos nenhum retorno por parte da Alitalia.

Enfim, a proposta da companhia foi aceitar uma multa que beirava os mil euros para adiar a passagem por cinco dias. Com o mesmo valor poderia comprar uma passagem de ida e volta Roma-São Paulo com outra empresa de transporte aéreo.

Sei que esse é um post atípico e que foge dos padrões convencionais, mas como o Post-Italy.com é um blog de viagens, a dica para quem estiver prestes a comprar uma passagem aérea é verifique exatamente as condições contratuais, as regras e custos para eventuais troca de bilhete. Leia fóruns, blogs e revistas de viagem e turismo sobre os serviços prestados pelas companhias.

Imprevistos acontecem. Por isso, se puder, não deixe de contratar um seguro de viagem durante a sua permanência no exterior e, em caso de necessidade, saiba que em Roma existem lugares que oferecem um serviço chamado de Guardia Medica Turistica, ativo 24 horas por dia nos seguintes hospitais: o Nuovo Regina Margherita, em Trastevere, e o Poliambulatorio Canova (Via Antonio Canova, 19), nos arredores da Piazza di Spagna.

Eu estou me recuperando, mas ver a tristeza de minha mãe ao partir no momento em mais precisava dela e a minha impotência em poder interagir com a Alitalia me faz pensar que o seu serviço dificilmente poderia se auto-atribuir a definição de customer care, em seu sentido mais amplo. Uma parte de mim partiu com ela. A outra está aqui, ainda vacilante e com cheiro de desinfetante nas narizes, mas que ainda respira.

This article has 16 comments

  1. Fabiane

    Estimo rápidas melhoras! Logo vc estará na ativa novamente!

  2. maria celia rolim

    Puxe, sinto muito por você. Sou sua leitora e gosto muito de seu trabalho. Tenha muita fé e paciência que este momento difícil vai passar e você ficará bem. Peco a Deus por você e sua família. Que Deus a abençoe,

  3. anelise sanchez

    Muita obrigada pelo carinho! Sinto todas as vibrações positivas! 🙂

  4. anelise sanchez

    Grazie de coração, querida!

  5. Luciene Rodrigues

    Melhoras! Deus te abençoe.
    Acompanho seu blog e adoro sua escrita. Logo logo você estará nova em folha pra retomar sua rotina, se Deus quiser!

  6. anelise sanchez

    Muito obrigada pelo afeto! 🙂

  7. Denya

    Oi Anelise, primeiramente, que bom saber que a cirurgia correu bem! Mas posso imaginar a sua dor com o retorno da sua mãe. Só quem mora fora pode compreender o que significa uma despedida para os que vão além-mar… Poxa, sinto muito por todos os percalços que ainda teve que enfrentar com a cia em relação ao bilhete. Espero que de alguma forma consigam um reembolso. Mas agora pense na tua saúde. Fique bem! Abraço de Firenze, Denya

  8. anelise sanchez

    Denya, querida, obrigada pelo apoio e carinho. O aspecto material conta pouco em momentos como esse, mas a sensação de impotência é grande diante da falta de sensibilidade.
    Bj

  9. Loanda Campello

    Oi Anelise, desejo boa recuperação para você e envio vibrações positivas aqui do Brasil. Logo você estará escrevendo seus posts maravilhosos.
    Um beijo!
    Loanda

  10. anelise sanchez

    Puxa, quanto carinho! Obrigada querida! espero te ver em breve em Roma! 🙂

  11. MARTA MARIA DETOGNI

    Anelise querida! Soube tudo isso pela sua mãe. A grande tristeza que a atingiu, atingiu a mim também. Espero que esteja bem. Deus te abençoe. “Entrego, Confio, Aceito e Agradeço.” Namastê! Bjs.

  12. Silvia

    Ane, querida. Texto lindo e emocionante, como sempre. Minha torcida por você é imensa! Fique com Deus!

  13. anelise sanchez

    Obrigada pelo carinho! 🙂

  14. anelise sanchez

    Obrigada minha querida! BJ

  15. Goretti Cardoso

    Passado o momento mais difícil, tenho certeza de que se sentirá mais forte a cada dia e que sua vida será ainda melhor do que antes da “viagem”. Em tempo, você escreve muito bem!!!

  16. anelise sanchez

    Muito obrigada pelo afeto! O carinho dos leitores é uma injeção de vitalidade! Bj 🙂

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