feriados na Itália
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Itália: ainda faz sentido falar em “festa” dos trabalhadores?

Primeiro de maio na Itália. Ainda faz sentido falar em “festa” dos trabalhadores em um contexto de recessão mundial pós-pandemia? A Itália dos dias de hoje é aquela caracterizada pela angústia, pelo medo do futuro, pela espera infinita por um seguro desemprego. Estima-se que um em cada dois trabalhadores serão obrigados a pedir o auxílio. No primeiro trimestre de 2020, o PIB italiano sofreu um decremento de 4,7% e especialistas acreditam que o impacto do coronavírus na economia nacional será devastador, “apagando” cerca de meio milhão de empregos.

A pandemia tornou ainda mais evidente a desigualdade social e em várias cidades na Itália crescem as filas para receber mantimentos ou para vender poucos objetos de valor em troca de dinheiro vivo.

Quando me mudei definitivamente para a Itália, um dos aspectos que me intrigava era a forte ligação dos italianos com as centrais sindicais e a grande tutela dos direitos dos trabalhadores.

Para começar, o primeiro artigo da Constituição do país afirma que “a Itália é uma república democrática fundada no trabalho” e isso denota a centralidade desse tema em território nacional, considerando-o uma condição fundamental para o exercício da cidadania.

Anos atrás, era raro ser demitido por justa causa na Itália, as férias eram contadas como dias úteis e não dias corridos. Era possível, por exemplo, desfrutar de alguns dias de licença paternidade, ausentar-se do trabalho por motivos de saúde, para prestar assistência a um parente doente ou aderir a uma greve sem sofrer fortes pressões.

Com a reforma dos direitos trabalhistas em nome de um mercado mais flexível, unida à política de austeridade defendida pelos vértices da União Europeia, diria que, com o passar dos anos, muitos dos direitos conquistados graças a anos de ações sindicais estão sendo reduzidos a pó.

Flexibilidade tornou-se sinônimo de precariedade e o tão sonhado lavoro a tempo indeterminado, ou seja, o emprego fixo, foi substituído por inúmeros tipos de contratos temporários e com poucas ou nenhuma garantia para o empregado.

Quem é contratado para um trabalho de poucos meses dificilmente consegue fazer planos a longo prazo, como pedir empréstimo para comprar uma casa, construir uma família ou, simplesmente, deixar a casa dos pais para morar sozinho. É aquela velha história da economia circular: com pouco dinheiro no bolso ninguém consome e se ninguém consome mais empresas fecham as portas e demitem em um espiral sem fim que gera ainda mais recessão.

A aposentadoria tornou-se uma miragem para a maior parte da população e os níveis de desemprego na Itália, principalmente entre os jovens e no sul do país, são alarmantes. O desemprego italiano é uma ferida profunda. Não se trata, como anos atrás declarou a ex ministra do trabalho, Elsa Fornero, de ser “troppo choosy” (seletivo), referindo-se aos jovens que, em sua opinião, deveriam aceitar qualquer tipo de trabalho.

A Itália é repleta de profissionais com título universitário que entregam pizzas ou aceitam poucos euros por hora para trabalhar em um call center. A maior parte dos agricultores vendem a 0,10 centavos de euros o quilo das próprias laranjas para poder pagar as suas dívidas com os bancos e aqueles que, mesmo assim, são conseguem honrar o pagamento, tem suas próprias casas e terrenos confiscados.

O que está acontecendo em toda a Europa é o predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo. Em vez de impor a tributação das transações financeiras e investir em inovação tecnológica, salvamos os bancos às custas de cortes no sistema de welfare. Por outro lado, em nome da crise e em busca de salários ainda mais achatados, muitas empresas transferem-se para o exterior depois de anos recebendo ajuda econômica do estado, como a Fiat.

Todos os anos, aqui em Roma, o primeiro de maio é festejado com um show musical que dura diversas horas e realizado na famosa Piazza di San Giovanni in Laterano, em frente da homônima basílica. Geralmente, o espetáculo começa por volta das 15 horas e só acaba a meia-noite, com direito a transmissão ao vivo pela TV.

Milhões de pessoas invadem a praça para curtir a música de cantores famosos e escutar as reflexões de personalidades italianas sobre o mundo trabalhista Esse ano, obviamente, nada de aglomerações. Em alternativa, o canal 3 da TV estatal transmitirá entrevistas e música ao vivo, em streaming. Anos atrás a atmosfera que se respirava na praça era de alegria, mas o que hoje prevalece é a preocupação. Será a política capaz de dar respostas estruturais à nova pobreza?

 

 

This article has 5 comments

  1. Deyse Ribeiro

    Otimo e verdadeiro texto Anelise, pura verdade italiana! Parabens!

  2. Anelise Sanchez

    Obrigada, querida! Voce é sempre muito gentil! Bom primeiro de maio para vc!

  3. Cristina Souza da Rosa

    Gostei muito, Anelise.
    Na Espanha a situação é a mesma da Itália. Contratos lixo, muito trabalho temporário, mal pago, demissões facilitadas e muita empresa fechando e deixando o país. O que não para de crescer são os callcentres.
    Já foi o tempo em que a Europa era um continente de sonhos e para ganhar dinheiro.

  4. Anelise Sanchez

    Obrigada, Cristina! Infelizmente, a situação italiana é dramática e acho que a nossa geração esta enfrentando um periodo muito divicil…

  5. Natalia Itabayana

    A situação que você descreveu é bem parecida deste lado dos Alpes: vemos a geração baby boom do pós-guerra desfrutar de benesses que nossa geração não verá, e os jovens são encorajados pelos pais à deixar a França, procurando melhores oportunidades na Alemanha ou Estados Unidos. Foi-se o tempo em que a Europa vivia o bem-estar social. Atualmente,somos sufocados pelo mau-estar social e promessas vazias de que em breve a situação se reverte.

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