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Puglia inédita. A beleza essencial dos Monti Dauni.

Cúmplice o destaque que a região tem conquistado na mídia internacional depois de ser a meta escolhida por celebridades, o nome Puglia (ou Apúlia, aportuguesando) é cada vez mais familiar entre os turistas brasileiros.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Entre os italianos, aquela que é considerada o “calcanhar da bota”, ao sul do país, sempre foi um dos destinos mais badalados do verão. Mérito de um dos litorais mais belos e extensos da Itália, claro, mas não é só isso.

Além das praias, a Puglia é uma região rica de história e tradições. Esbanja opulência com o barroco de Lecce. Ofusca a vista com a beleza das cidades brancas da chamada Valle d’Itria. Soma patrimônios da humanidade como, por exemplo, os trulli de Alberobello e o Santuário de São Miguel Arcanjo, entre outros.

Puglia, Itália, Monti Dauni

E orgulha-se de um passado glorioso, já que foi a “porta do Oriente”. Seu território, entre outros povos, foi ocupado por gregos e conquistado pelos romanos. Não por acaso, a famosa Via Ápia unia Roma até o porto de Brindisi.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Essa é a Puglia mais famosa, mas eu gosto de antecipar tendências e descobrir lugares menos frequentados pelo turismo de massa e por isso ainda autênticos, principalmente se visitados na baixa estação, quando o contato direto com a população local é ainda mais intenso.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Existe uma Puglia quase inédita aos olhos dos brasileiros, aquela dei Monti Dauni. Na província de Foggia, na fronteira com as regiões Molise e Campânia, essa parte da Puglia não tem a fama de suas vizinhas mais badaladas. E, por isso, mesmo, é um destino ideal para quem ama o slow travel e o contato direto com a natureza.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Ali você ainda se sente “protagonista” porque não passará despercebido e receberá a típica hospitalidade de quem está acostumado a relacionar-se com diferentes culturas. Essa é uma terra transitada por pastores que fazem a transumância de ovelhas, por peregrinos que percorrem a Via Francigena do Sul, pela comunidade Arbëreshë, originária da Albânia hoje radicada em Casal Vecchio di Puglia, e com o dialeto franco-provençal de Faeta e Celle di San Vito, com seus apenas 150 habitantes.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Aquela dei Monti Dauni e seus 30 “comuni” (cidades) é uma Puglia insólita. Um território composto por vastas colinas que no outono se tingem de ocra e preto, bosques com carvalhos seculares, borghi ou vilas medievais classificadas como os mais belos da Itália (Alberona, Bovino, Pietramontecorvino e Roseto), uma rica herança arqueológica com, inclusive, vestígios neolíticos, e uma gastronomia que faz escola.

Um dos cidadãos ilustres da zona do Monti Dauni é o ex-premiê italiano Giuseppe Conte, nascido em Volturara Appula.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Nosso itinerário de viagem pelos Monti Dauni começa em Bovino, situada a 647 metros sobre o nível do mar e cerca de 3 mil habitantes. É considerado um dos vilarejos mais lindos do país e etapa imperdível para quem se aventurar por essa parte da Puglia.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Os números são emblemáticos de sua riqueza: 1 castelo, 4 museus, 13 igrejas, 3 bibliotecas e 800 portais decorados com a pedra local. Se você observar bem as portas de suas casas, notará que além dos brasões de famílias nobres, algumas delas foram decoradas com elementos que fazem uma alusão à profissão de seus moradores.

Chegamos em Bovino na hora do almoço e antes mesmo de explorar a cidade descobrimos os seus sabores. No Origini Bistroquet, criação do Bar Giannotti, também doçaria premiada, nos aguarda um prato com frios obtidos de uma raça autóctone, o Maialino Nero, burrata, pizza, taralli, os típicos biscoitinhos locais, e as chamadas petole, bolinhos fritos preparados com a massa de pão.

Puglia, Itália, Monti Dauni

O dia continua com um percurso de trekking de aproximadamente sete quilômetros organizado pela Associazione Verde Mediterraneo.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Partimos do Bosco Macchione e no meio da natureza caminhamos até a graciosa cidade de Deliceto. Impossível não notar, no alto, o seu imponente castelo do século XI que funcionou como fortaleza militar.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Em suas ruelas, a atmosfera que se respira é aquela de uma cidade do interior. As bicicletas apoiadas na frente das casas, sem cadeados. O barbeiro “vintage” que conhecem pessoalmente cada cliente e os cumprimenta pronunciando o seu próprio nome. Um morador apaixonado pelo passado de seu “borgo” que vira voluntário e explica cada detalhe das transformações do castelo durante os últimos séculos.

Puglia, Itália, Monti Dauni

O monumento é tão bem conservado que ali foram gravadas cenas do filme intitulado “NOI credevamo”, do diretor italiano Mario Martone e como a arte imita a vida, no fim do dia, o castelo iluminado parece abraçar Deliceto.

Uma viagem para a Puglia não é completa se você não provar le orecchiette, macarrão símbolo da região. No restaurante Ballarò, provamos aquele feito com o grano arso, escuro, e obtido graças aos camponeses recolhiam os grãos que caíam no chão depois da colheita do frumento e queimada da palha que ficava no terreno.

Pernoitamos em Bovino e, no dia seguinte, acordo bem cedo para explorá-la antes de o vilarejo “acordar”.  Passo diante das casas e sinto o cheiro do café preparado com a moka. Na frente de um bar-cafeteria um casal de amigos conversa com vozes ainda roucas.

O silêncio das primeiras horas, interrompido pelos meus passos, suscita a curiosidade de um alguém que faz “capolino” (espia disfarçadamente). A desconfiança recíproca é superada por um “buongiorno” cordial. E no seu rosto leio a surpresa de quem se pergunta por que levo uma câmera fotográfica e registro detalhes de um dia qualquer. As pombas na rosácea da catedral românica, com sua fachada assimétrica.

Puglia, Itália, Monti Dauni

As roupas que balançam no varal. Um gato que desaparece depois da curva. Um cartaz desbotado com a escrita “vende-se”. Noto que nas casas em venda não há anúncios de imobiliárias, mas só contatos de privados e descubro outra tradição local.

Entre 600 e 800 d.C, quando uma parte do sul da Itália foi conquistada pelos árabes, nascia a figura do “sensale”, palavra que deriva do árabe “simsar”. Era uma espécie de intermediário, que colocava em contato pessoas da mesma cidade para resolver desde controvérsias familiares, até combinar casamentos. Mais tarde, com o Império Romano, esse personagem passou a se dedicar à intermediação comercial, incluindo transações com imóveis. Em outras palavras, um antenado das imobiliárias que na província ainda existe de maneira informal.

Monti DAUNI

Depois do café, o programa da manhã é um passeio a cavalo no Bosque Paduli, em meio a carvalhos seculares, e logo depois a descoberta do Rione Fossi, a parte “fantasma” e mais antiga de Accadia.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Essa cidade dei Monti Dauni foi vítima de um terremoto e hoje, suas casas escavadas na rocha, são o palco do Accadia Blues, um festival internacional que acontece no terceiro final de semana de julho.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Explorando as suas ruelas silenciosas e as frases de escritores e poetas famosos deixadas em suas portas, a gente percebe que apesar de desabitada, não há como apagar definitivamente o seu passado.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Tudo fala. os rastros de vida que ainda sobrevivem nos objetos deixados no interior de uma casa, no nome em um muro, na vegetação que floresce em meio às ruínas.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Nosso almoço acontece na Masseria Salvatore, onde provamos diversos tipos de queijos locais, e se você viajar para a Puglia não deve perder a chance de conhecer uma “masseria”, fazendas seculares, dos séculos XVI a XVII, cercadas por plantações e animais.

Monti DAUNI, Puglia

São estruturas rústicas de zonas rurais, mais muito charmosas. Mantendo suas características originais, algumas delas se transformaram em estruturas hoteleiras que oferecem serviços de gastronomia impecáveis.

Puglia, Itália, Monti Dauni

No final da tarde retornamos até a cidade de Bovino porque ainda há muito a ser descoberto. Depois de visitar a catedral de Santa Maria Assunta e ter a chance inigualável de subir em seu teto para admirar Bovino do alto, com direito até a tocada de sinos, exploramos o acervo do Museo Cívico, com uma coleção que vai desde o Neolítico até o período medieval, e o Museo Diocesano no interior do castelo de Bovino, repleto de objetos sacros.

Puglia, Itália, Monti Dauni

A noite chega e notamos que apesar de ser uma cidade pequena, como é típico no sul da Itália, onde o clima é agradável mesmo no outono, a comunidade local passa muito tempo ao ar livre e aproveita o sábado a noite para sair e encontrar os amigos na Villa Comunale, grande espaço verde onde também fica a pizzaria Cumbà Franc, a mais frequentada pelos locais.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Monti Dauni combina com natureza e no domingo nos aventuramos em um passeio de e-bike até chegar ao agriturismo Piana delle Mandrie, cercado por animais e muito verde.

Puglia, Itália, Monti Dauni

A grande quantidade de clientes nos faz intuir que a cozinha local não nos decepcionará. Dito e feito. Seu proprietário nos explica que tudo o que é levado ao prato é cultivado em suas hortas. O macarrão é preparado com a farinha do moinho local, que você também pode visitar, o “Lo Moleno d’Acqua del Ponte.

Puglia, Itália, Monti Dauni

O molho da pasta é realizado com ingredientes “pobres” que por outros seriam descartados. Exemplos? Talos de abobrinhas (tadd e’ checozz, no dialeto local), as folhas de salsão ou ervas e vegetais que crescem espontaneamente nos campos, como o lampascione, uma espécie de cebola mais amarga. Essa tradição dessa parte da Puglia deriva da figura do terrazzano, aquele que não tinha horta própria, mas recolhia verduras e ervas espontâneas para vendê-las.

Monti DAUNI

Em uma sociedade de forte tradição camponesa, nada se perde. O pão endurecido é “reciclado”, transformando-se em “pancotto” sopa de pão, acompanhada por verduras e azeite. Os queijos são preparados com o leite dos animais do agriturismo e ele sublinha que até clientes veganos convictos se converteram e, ao verificar de perto o seu respeito pelos animais, a sua postura ética, acabaram provando os seus queijos.

Puglia, Itália, Monti Dauni

Não me surpreende. Voltei dessa viagem com menos certezas e mais descobertas. Com aquele gostinho de ter explorado uma parte de território italiano que prioriza coisas simples e, portanto, livre de máscaras e camadas supérfluas, e mais próxima da nossa essência.

Onde ficar em Bovino:

B&B Dormire nel Borgo

Residenza Ducale Castello di Bovino

La casetta dei Racconti

Para organizar a sua experiência:

www.visitmontidauni.it

 

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