Giro d’Italia, uma epopeia que dura 100 anos
Estes dias, como todos os anos, nas estradas italianas está acontecendo o Giro d’Italia, uma cansativa corrida de bicicleta em etapas, divididas em três semanas. Os repórteres não hesitam em defini-la “a corrida mais difícil no país mais bonito do mundo.”
Além de uma certa tendência ao bairrismo, considerada a fama do Tour de France e da Vuelta espanhola, é certamente um evento esportivo no qual a coesão e a colaboração da equipe estão interligadas com as qualidades individuais dos atletas e até mesmo com episódios de heroísmo.
O Giro nasceu em 1909 a partir de uma ideia do jornalista esportivo Tullo Morgagni e da iniciativa do jornal La Gazzetta dello Sport. A edição de 2017 é particularmente especial porque a competição se auto-celebra. Essa é a centésima edição da história, porque a corrida foi suspensa durante as duas guerras mundiais.
Em suas primeiras edições os ciclistas não eram todos os profissionais. Se tratava de pessoas acostumadas à resistência e dotadas de uma força instintiva, que não era o resultado de treinamentos planejados. Muitos corriam sozinhos, sem o suporte de uma equipe ou a figura de um patrocinador. Por isso, assim que concluíam uma etapa recolhiam os próprios pertences e bagagem e procuravam um lugar para para dormir, como em uma pousada ou até um celeiro. O vencedor da primeira edição, Luigi Ganna, era pedreiro.
Eu usei a palavra heroísmo. Muitas etapas são caracterizados pelo fato de serem realizadas em cidades de montanha. Nas paisagens mais altas do Giro a resistência dos atletas e as suas capacidades de “escaladores” são colocadas à dura prova. A programação inclui estradas situadas entre 2.200 metros e 2800 metros acima do nível do mar, mas até os picos relativamente baixos podem ter inclinações e pendências que superam os 20%. A duração das etaspas de 100-250 km por dia, a diferença de altitude e as condições climáticas altamente variáveis, muitas vezes com áreas cobertas de neve, representam o cenário espetacular das grandes batalhas entre atletas e rivais que entraram para a história.
Cada edição do Giro gerou uma lista de nomes a serem lembrados e pelo menos um par de antagonistas. Nos anos trinta, foram o antigo campeão Alfredo Binda e o jovem desafiante Learco Guerra. O final dos anos quarenta e cinquenta foram o período das batalhas épicas entre Gino Bartali e Fausto Coppi. Vale a pena lembrar as conquistas desses personagens. O primeiro foi um toscano simples e muito direto.
Apesar de ter colecionado vitórias, muitos o descreveram, injustamente, como o eterno segundo classificado depois de Coppi, mas nos últimos anos demonstrou a sua grande generosidade. Durante a Segunda Guerra Mundial, Bartali colaborou na resistência contra os nazistas fazendo longos e difíceis trajetos para levar transversalmente, escondidos dentro do cano da bicicleta, documentos de identidade falsos que foram usados para salvar cerca de 800 judeus.
Coppi era mais elegante. Seu “love affair” com uma “senhora branca” misteriosa que o aguardava em cada chegada era alimento para a imprensa. Ele era magro e parecia ter sido programado para correr. Uma canção italiana descreve-o carinhosamente como “o nariz triste como uma subida e os olhos alegres típicos de um italiano em uma viagem.”
Em uma famosa fotografia Bartali e Coppi passam um ao outro uma garrafa de água (naquela época acontecia quase de estar sozinho durante a corrida) e ainda hoje os italianos discutem sobre aquela imagem, tentando adivinhar qual dos dois atletas tenha oferecido ajuda ao rival.
A vitória mais bela de Fausto Coppi também foi um dos maiores feitos na história do ciclismo. Era 1949. Em Sass Pordoi ele tinha mais de 6 minutos de vantagem de seu eterno rival Bartali e por isso já era o provável vencedor final do Giro.
Chovia. O céu estava coberto de nevoeiro e fazia frio. Primo Volpi tenta atacar, ganhando cinqüenta metros sobre os outros, mas ele o alcança e, em seguida, ultrapassa o rival deixando o vazio por trás dele. Coppi chega sozinho na Madalena, mas ainda há 190 quilômetros para a chegada em Pinerolo. A TV ainda não tinha sido inventada e tudo é relatado via rádio. O repórter Mario Ferretti pede a linha à redação. Quando finalmente vê alguém chegar na névoa começa assim o seu discurso: “Um homem sozinho está no comando, sua camisa é branca e azul-claro, o nome dele é Fausto Coppi!”
Na edição de 1965 foi instituido o “Cume Coppi” para comemorar o “campeão”. La Cima Coppi, como è chamada em italiano, diferente em cada edição, é o ponto mais alto do Giro. O Passo dello Stelvio, com seus 2758 metros, é estrada mas alta na Itália e, portanto, a altitude máxima atingida pelos ciclistas da corrida.
Obviamente a história do Giro d’Italia teve outros heróis. Os anos 60-70 foi o período do belga Eddy Merckx. Vencia quase tudo e não queria deixar nenhuma conquiista aos outros. Ele foi apelidado de “o caníbal”. Na década de oitenta a rivalidade entre Francesco Moser e Beppe Saronni foi dura, menos poética e “temperada” pela mútua troca de frases malvadas.
Marco Pantani, chamado de pirata pela bandana em sua cabeça calva, foi uma das figuras mais trágicas. Mesmo depois de um acidente grave, a força de vontade levou-o a vencer o Giro d’Italia e também o Tour de France. Ele era um escalador, capaz de dar o melhor nas subidas. Vencia muito e talvez por isso tenha sido envolvido, de forma errada ou não, em uma história de um elavado valor de hematócrito (irregular de acordo com os juízes) que interropmpeu a sua carreira. Deprimido, ele terminou a sua história em um pequeno hotel em Rimini, onde morreu de intoxicação aguda de cocaína e edema pulmonar. Pantani está no coração de todos os italianos.
Cada ano, a competição inclui uma “montanha Pantani” e há pelo menos dois monumentos dedicados a ele. Um deles é na sua terra, Cesenatico (cerca de 100 km de Bolonha), uma estátua de bronze do ciclista em uma bicicleta. A história do Giro, cheia de triunfos, é muitas vezes manchada com a desconfiança, a traição e a tragédia. Muitas vezes, um simples analgésico pode ser detectado por testes como doping, porque alivia os músculos do cansaço. Às vezes, a decepção é grande. O maior escândalo foi aquele envolvendo o americano Lance Armstrong.
Ele venceu sete edições consecutivas do Tour de France (um recorde na história francesa) econquistou inúmeros sucessos, mas suas vitórias foram revogadas depois de uma investigação conduzida pela Agência Anti-Doping dos Estados Unidos (USADA ) em que foi demonstrado que recorria sistematicamente a práticas de doping e que, como um déspota, forçava toda a equipe, a EUA Postal, a seguir a mesma prática.
O Giro d’Italia parece uma metáfora como no fundo é qualquer esporte. Atinge os picos mais altos e atravessa os pontos mais baixos, do país como da alma humana.