Meu passeio ideal pelo gueto judaico em Roma
Para mim, o gueto judaico de Roma é sempre uma boa pedida. Quase sempre acabo chegando lá depois de uma manhã passada na ilha Tiberina.
Quando, por exemplo, depois de um passeio pelos arredores do hospital Fatebenefratelli (no passado um refúgio isolado para as vítimas da peste de 1656) e da igreja de São Bartolomeu (o santo martirizado depois do esfolamento de toda a sua pele), atravesso a ponte Fabricio com seus vendedores ambulantes e penso em romanesco: “Che ce vuo?” (basta tão pouco) para atravessar a rua e esticar até o gueto.
Então passo na frente da Chiesa di San Gregorio della Divina Pietà, do lado oposto da Sinagoga de Roma, e chego até o Portico di Ottavia, restaurado e dedicado à irmã do imperador Augusto.
Seus vestígios arqueológicos poderiam fazer a gente pensar exclusivamente na Roma monumental, mas basta erguer o olhar, à sua direita, para entender que esse não é um lugar qualquer. Uma placa lembra a deportação de 2091 judeus romanos até os campos de concentração e as chamadas pietre d´inciampo (pedras de tropeços) evidenciam os nomes das vítimas capturadas diante de suas casas.
O lugar que no passado foi sinônimo de morte hoje esbanja vida. Turistas disputam as melhores mesas para provar um carciofo alla giudia (alcachofra frita) no restaurante Giggetto. Mercearias históricas que parecem revender os mesmos pijamas e camisas de flanela (alguém ainda as usa?) há anos se mesclam a lojas de design e a docerias kosher.
Nem todo mundo sabe que em época medieval, sobre as ruínas do portico existia um mercado de peixes e a igreja de Sant´Angelo in Pescheria. Uma placa em latim relembra que os comerciantes eram obrigados a doar aos representantes da Câmara do Capitólio a cabeça dos peixes que superassem 1,13 metros, a medida de uma lápide presente no local. Pode parecer estranho, mas a cabeça era considerada a parte mais saborosa do peixe e servia para enriquecer ensopados.
O tempo em que ainda se pescava no rio Tibre passou, mas o Portico d´Ottavia continuou sendo uma das áreas de aglomeração do bairro. Ali os judeus eram obrigados a frequentar o sermão de padres jesuítas.
Da Via del Portico d’Ottavia você pode chegar até Piazza delle Cinque Scole, assim chamada em homenagem a edifício que antes da construção da Sinagoga de Roma abrigava cinco escolas rabínicas. Nessa praça fica a Fontana del Pianto (Fonte do Choro). Muitos acreditam que a Virgem teria chorado de comoção diante da resistência dos judeus que não se converteram ao Cristianismo.
Nessa mesma praça também fica um local aparentemente anônimo e minúsculo para os padrões de um restaurante que continua atraindo turistas e personalidades do mundo inteiro; a trattoria Sora Margherita. Pouco distante fica uma instituição no bairro, a pequena loja de doces kosher das irmãs Boccione.
Em apertados 20 metros quadrados de uma doceria que não possui nem placa para identificá-la você encontrará delícias como a torta de ricota com cerejas negras e a chamada pizza di beridde. Se trata de um doce que de uma certa maneira assemelha-se às irmãs Boccione, conhecidas pelo gênio nem sempre afável.
Rústico por fora mas surpreendente por dentro, a pizza di beridde è recheada com uvas passas, amêndoas, pinoli e frutas cristalizadas. Se não quiser ser reprovado no “teste de iniciação” das irmãs Boccione evite perguntas do tipo “esse tem uva passa?” e facilite o troco.
De lá eu volto na direção do Portico d’Ottavia e sigo outro ritual; aquele de passar debaixo dos aindaimes que sustentam o pórtico olhando as janelinhas floridas que tem o privilégio de integrar-se à arqueologia da capital. Percorrendo os “bastidores” do pórtico você circulará por ruas como Via di Sant’Angelo in Pescheria e Via della Tribuna di Campitelli. Provavelmente notará algum cartaz com a escrita “vende-se” ou “aluga-se” em edifícios que, no passado, provavelmente eram úmidos e escuros.
Mas o gueto também reserva surpresas arquitetônicas e para descobrir algumas joias chegue até a Piazza Mattei, que além de do edifício construído pela família homônima abriga a Fontana delle Tartarughe. As tartarugas que decoram a fonte foram atríbuidas à Bernini e segundo a crença popular, a obra teria sido construída em uma só noite para impressionar a mulher amada pelo duque Mattei. Isso porque o pai da pretendente duvidava do poder de seu futuro genro.
Na esquina com a Via della Reginella fica uma loja curiosa (Peperita) que só vende artigos a base de peperoncino, um dos temperos mais usados na culinária italiana.
De lá, percorra um pedacinho da via Michelangelo Caetani até o número 32 e vá até o Palazzo Mattei di Giove, hoje sede de um centro de estudos americanos. O interior não é sempre aberto ao público, mas seu pátio externo – bem visível – é um dos mais belos da capital. Depois de um passeio como esse, você também caiu de amores por Roma?
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