Pitigliano e a livraria que te convida a construir um mundo melhor
Recusar-se a aceitar que não é possível mudar o rumo das coisas. Enxergar temas invisíveis. Conceder uma chance a quem foi classificado como último. Imaginar e construir hoje um mundo com menos disparidades.
O sociólogo Zygmunt Bauman afirmava: “Se pensar no ano seguinte, plante o trigo. Se pensar nos próximos 10 anos, plante uma arvore. Se pensar nos próximos 100 anos, instrua as pessoas”.
Pessoas especiais e cidades menores da Itália sempre foram protagonistas nas histórias que compartilho aqui no Post-Italy.com
No próximo dia 27 de janeiro se celebra o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto e existem cidades italianas onde a sensibilidade relativa a esse tema é mais acentuada. Uma delas é Pitigliano, na Toscana, também conhecida como “a pequena Jerusalém”.
Pitigliano possui uma antiga comunidade judaica, uma sinagoga e o Museo dell’Associazione Piccola Gerusalemme.
Desde o século XV essa cidade serviu de refúgio para inúmeros judeus, principalmente depois das restrições impostas pelo estado pontifício entre 1555 e 1569 e as medidas impostas pelo Granduca di Toscana entre 1570 e 1571. Pitigliano foi um dos feudos que não aceitaram tais imposições e ali os judeus podiam continuar a trabalhar como banqueiros ou médicos.
Em um passado mais recente, no final da década de 30, com as leis raciais emanadas por Benito Mussolini, o número de judeus reduziu-se drasticamente em Pitigliano, mas essa terra, no coração da chamada Maremma toscana, mantém o seu caráter rústico, selvagem e principalmente lutador como a aura heroica dos “butteri” ou vaqueiros munidos de cavalo que são um dos símbolos dessa região.
Estive mais de uma vez em Pitigliano e durante minha ida até lá entramos por acaso na livraria “Le Strade Bianche”, que foi uma agradável surpresa.
Fomos recebidos por dois senhores de meia idade, Marcello Baraghini, editor, e Carlo Fè, fotógrafo, que prefere ser chamado de “Carlino” e que retratou os rostos, as rugas e as cenas mais emblemáticas de Pitigliano na década de 70.
Marcello não é um clássico editor, mas alguém que acredita que acesso ao saber é sinônimo de libertação e por isso é preciso democratizá-lo. Que livros foram feitos para serem folheados e não guardados. Que mesmo quem nasceu com o dom da escrita ou da palavra pode ter algo importante para contar.
Ele foi um dos pioneiros da editoria alternativa, nos títulos e nos formatos. Idealizou os livros de bolso 10×14 cm que custam mil liras vendidos inclusive em cafeterias. Na época, um café custava em média 800 liras e, portanto, o preço de um livro a mil liras era abordável.
O importante não era a estética, mas o conteúdo. Nada de capa rígida, livros volumosos ou com refinadas ilustrações. O “peso cultural” de um livro não era proporcional ao seu número de páginas ou necessariamente ligada a fama do autor.
Imaginem que Marcello teve a brilhante ideia de transformar em livros o saber de diversas pessoas analfabetas. Artesãos, como aquele que se dedicava a vasos de terracota, escavadores de tombas arqueológicas ou camponeses que se rebelaram à exploração da mão de obra local.
Eles transmitiram oralmente o que sabiam a um profissional que transcreveu suas histórias.
A grande popularidade dessa iniciativa editorial chegou na década de 90, quando um famoso jornalista italiano divulgou um dos títulos em seu programa de TV: “Carta a Meceneu sobre a felicidade”, de Epicuro, que vendeu mais de 2 milhões de copias.
A editora Le Strade Bianche publicou nomes como aquele da poetisa Alda Merini, que em um doloroso percurso de vida chegou a ser internada em um hospital psiquiátrico, ou textos como aquele de Franz Kafka sobre acidentes no ambiente de trabalho no Reino de Boemia.
Entrar em sua livraria é aceitar perder-se em uma realidade paralela, muitas vezes ocultada pela mídia tradicional. Seus olhos podem cruzar com títulos que exigem a nova atenção, com camisetas com frases estimulantes como “pense, é grátis!” ou com uma mostra fotográfica com poéticas imagens em branco e preto de Lorenzo Aldolfo Denci, vencedor da medalha de ouro na Exposição Universal de Berlim, em 1905 e morto durante os bombardeios da segunda Guerra Mundial. Em agosto, Marcello também promove na cidade um festival dedicado à literatura resistente.
Se passar por Pitigliano, passe por essa livraria que não é uma simples provocação, mas um convite a refletir sobre o como, cada de um de nós, em nosso pequeno universo, pode construir um mundo melhor.
Muito bom seu texto! Mais um lugar pra eu visitar. Os donos devem ser pessoas especiais!
Muito obrigada! Fico feliz!