Voto na Itália: reflexões sobre o referendo constitucional
No próximo dia 4 de dezembro, os italianos votarão em um referendo para promover ou reprovar a reforma constitucional que prevê mudanças significativas na arquitetura institucional e política do país.
Estamos em plena fase de campanha a favor da proposta. A TV nacional divulga periodicamente comerciais sobre o plebiscito e a última polêmica é a carta enviada em nome do premiê italiano aos 4 milhões de italianos residentes no exterior e inscritos no registro da AIRE (Anagrafe degli Italiani Residenti all´Estero). Para os opositores da reforma, a iniciativa foi arbitrária e abusiva. Consciente do enorme potencial dos votos da comunidade italiana em terras estrangeiras, a ministra para relações com o parlamento Maria Elena Boschi também esteve recentemente na América do Sul defendendo os principais princípios da reforma.
O resultado desse referendo representará não só um teste político, mas também um termômetro da popularidade do governo liderado por Matteo Renzi. Apelidado de “rottamatore” (demolidor), o premiê se expôs pessoalmente a favor da proposta e chegou a afirmar que renunciaria ao próprio cargo caso a reforma fosse rejeitada pelos eleitores.
Não sou especialista em direito constitucional, mas para entender os princípios da proposta é necessário evidenciar alguns fatos históricos. A Itália é uma República Parlamentar e a sua constituição entrou em vigor em 1948, após o fim da Segunda Guerra Mundial e do período de fascismo. A democracia do país baseia-se no chamado bicameralimo perfetto: um parlamento bicameral composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado; ambos com poderes idênticos. Uma lei, para ser emanada, precisa da aprovação da Câmera e do Senado. Assim, se durante o iter para a revisão de uma lei um dos ramos do parlamento propõe eventuais emendas no texto, elas deverão ser novamente aprovadas pela Câmara e pelo Senado.
Esse processo, obviamente, exige tempo, mas essa é uma maneira de garantir a democracia e o mútuo controle sobre a atividade legislativa, evitando a concentração de poder. A Câmera possui oficialmente 630 deputados e o Senado é formado por 315 representantes eleitos pelo voto, além dos senadores vitalícios, ex-presidentes e outras cinco personalidades indicadas pelo Presidente da República. O presidente da República cumpre mandato de sete anos e com o sistema eleitoral vigente na Itália – chamado de Italicum – o eleitor não escolhe diretamente os seus candidatos, mas os partidos ou as coalizões de sua preferência. Os candidatos são indicados pelo secretariado do partido ou por meio de eleições primárias.
No discutido esquema eleitoral italiano, é previsto um sistema proporcional, com prêmio de maioria para a lista que obtém mais de 40% dos votos (340 das 630 cadeiras na Câmara) e limite mínimo de 3% para ter acesso ao Parlamento. A proposta de reforma constitucional pretende mudar radicalmente o desenho institucional do país. Antes de mais nada, a reforma anula o bicameralismo paritário e substitui o Senado com uma casa composta por 74 conselheiros regionais e 21 prefeitos escolhidos pelas assembleias legislativas de cada região e não diretamente pelos eleitores. Todos conquistariam automaticamente a polêmica imunidade parlamentar.
Outros cinco membros seriam nomeados pelo presidente da República, chegando a um total de cem senadores. A nova versão do Senado teria menos competências e poderia apenas ratificar reformas constitucionais, referendos e possíveis tratados internacionais. Para o governo, essa seria uma maneira de cortas gastos, agilizar a tomada de decisões e garantir a representatividade dos interesses das regiões.
Para aqueles contrários à reforma – com uma casa caracterizada por poderes limitados e o atual sistema eleitoral – o governo dominaria o único ramo do parlamento com poderes efetivos – a Câmara – enfraquecendo o Parlamento e deslegitimando um sistema equilibrado de democracia. Além disso, comportaria custos extras para os frequentes deslocamentos dos representantes das vinte regiões e não eliminaria os privilégios e altos custos fixos da política. Estima-se que a reforma diminuiria somente de 1/5 os custos do Parlamento.
Outro ponto fundamental da reforma é a abolição do CNEL (Consiglio Nazionale dell´Economia e del Lavoro) e das províncias, entes com poderes de nível intermédio entre as regiões e as prefeituras, o estabelecimento de prazos para a aprovação de projetos parlamentares e a revisão do Título V do capítulo II da Constituição. Isso significa que o Chefe de Estado assumirá as competências relativas a setores estratégicos como defesa civil, energia e infraestrutura.
Até agora a proposta não foi respaldada pelos principais partidos da oposição e expoentes do próprio partido de Matteo Renzi também sublinharam que a reforma constitucional possui lacunas. Constitucionalistas italianos comentam que a proposta seria o avesso dos princípios da Constituição e provocaria uma espécie de novo autoritarismo. Para muitos cidadãos, essa não é uma ocasião única e imperdível de modernizar o país, mas uma revisão apressada e deficitária da máquina institucional em um contexto que não dá os italianos a chance de escolher pessoalmente os seus representantes; o verdadeiro nó político até agora não desatado pelo governo.
Os eleitores devem opar por um “sim” ou um “não” na cédula eleitoral. O “sim” significa que aprovam a reforma. O “não” que são contrários à reforma constitucional.