Burano e a vida em cores na laguna de Veneza

É um clichê, mas a vida é feita de escolhas. Ou não escolhas. Ir ou ficar? Direita ou esquerda? Casar ou comprar uma bicicleta? Maternidade ou profissão? Adicionar ou subtrair pessoas, bens materiais? Branco ou preto?

Todos os dias, estamos bem no meio de um elástico imaginário que nos impulsiona de um lado para o outro. A gente pode optar por pequenas incertezas, pela exposição – mesmo que isso provoque noites de insônia – ou pela imobilidade. Nada foge de controle, mas também nada acontece.

Não estou falando de grandes riscos ou de aventuras megagalácticas. Antes de sair de casa em um dia nublado, por exemplo, quantas vezes você controla a previsão do tempo no celular? – Ah, mas pode chover! Sim, mas se sair de casa sem o guarda-chuva no máximo pode se molhar, provar a sensação de não ter o controle sobe tudo.

É assim. Podemos nos satisfazer com uma vida feita de cores primárias ou correr o risco de combiná-las e descobrir novas tonalidades. Burano é assim. Nas páginas de guias turísticos ou na vida real, é uma cidade espalhada sobre quatro pequenas ilhas multicoloridas unidas por canais que parecem ter saído de um catálogo Pantone.

Localizada na parte norte da lagoa de Veneza, a cerca de 8 quilômetros de Murano e a 11 km de Veneza, Burano pode ser visitada com uma travessia de vaporetto que dura cerca de 40 minutos.

De Fondamente Nove em Veneza é possível pegar a linha 12 do vaporetto. Já a linha 9 conecta Burano a Torcello enquanto a NLN (Notturno Laguna Nord) faz o percurso noturno entre Fondamente e Punta Sabbioni, passando por Burano.

Chegando lá, você encontrará uma grande praça cercada de árvores e conseguirá avistar a ponte que une Burano a Mazzorbo.  Não há um percurso específico para explorar Burano. Gostoso mesmo é se perder entre suas ruelas e descobrir que a ilha não é só um cartão postal, mas território de gente comum.

Em alguns momentos você pode ter a impressão de circular entre a cenografia de um parque de diversões para adultos, mas cenas como a roupa estendida no varal, o tênis que seca na janela ou com laços rosas ou azuis pendurados nas portas para indicar a chegada de um bebê são sinais da vida que pulsa.

De uma certa maneira, no cenário da ilha multicolorida não há um único protagonista. A altura média dos prédios é quase sempre a mesma e o que chama a atenção é a sensação de alegria transmitida pelo conjunto de cores.

Ao que tudo indica, elas foram pintadas com tons fortes porque assim, de suas barcos, mesmo em dias de forte neblina os pescadores podiam reconhecer facilmente suas casas, mesmo que de longe.

Provavelmente, Burano foi fundada pelos habitantes da cidade romana de Altino que refugiaram-se na lagoa para fugir da invasão de bárbaros. As primeiras casas eram construídas sobre palafitas e o seu nome deriva da palavra “Boreana”, uma porta da antiga Altino exposta ao vento Bora.

A partir do XVI a cidade ganhou popularidade graças a elegantes rendas, ainda hoje uma das principais atividades de Burano. Em muitas lojas da cidade é possível cruzar com senhoras de idade que realizam o chamado punto in aria (pontos no ar), tamanha é a delicadeza de peças em renda que poderiam flutuar. O branco cândido das criações das rendeiras contrasta e complementa-se com as cores fortes das casas e embarcações locais.

O principal pondo de encontro de Burano é a Piazza Baldassare Galuppi – uma homenagem ao compositor nascido na cidade. Nessa praça fica a Chiesa di San Martino, famosa pela sua torre inclinada, e também o Museo del Merletto, que fica na antiga sede da escola de rendeiras de Burano, fundada em 1872.

Ali estão expostas rendas com figuras geométricas, floreais e marítimas, objetos como guarda-sol, toalhas usadas nos altares de igrejas, roupas de batizado, leques e outras peças elegantes. Outro lugar imperdível para quem estiver em Burano é o cruzamento entre dois canais onde ficam os chamados Tre Ponti (Três Pontes) que unem os distritos de San Mauro e San Martino Sinistro e Giudecca. É nesse ponto que o reflexo das casas coloridas nas águas é ainda mais espetacular.

Passeando por Burano, não deixe de provar os biscoitos chamados de “bussolà“ e de fotografar a Casa di Bepi (Via al Gottolo), uma propriedade decorada com formas geométricas multicoloridas. Bepi, nascido em 1920, não está mais entre nós mas para os habitantes de Burano ele continua vivo na memória como o “Bepi Suà”, o homem que sonhava em ser um projecionista de cinema e adorava estar ao sol sem preocupar-se com a estética de suas camisetas suadas. Porque Burano é assim. Feita de odores, de cores e de quem acredita que sempre haverá espaço para desfiar a vida em preto e branco.

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