
A história de Roma nas placas milenares das enchentes do Tibre
Às vezes tenho a sensação que alguns romanos carregam uma armadura invisível. Poucas coisas os surpreendem, os abalam, e a realidade é aceita com uma certa resignação. Talvez porque, em sua longa história, Roma já tenha enfrentado de tudo. Ou pela consciência que a vida é assim mesmo, efêmera, descontínua. Que assim como o seu rio, o Tibre, segue um fluxo que foge do nosso controle.
Ascensão e queda de imperadores. Governo papal. Conquistas e perda e territórios. Intrigas. Invasão nazista. Segregação de judeus. Roma cidade aberta. Bombardeada. Roma da Dolce Vita. Roma que se reergue e cai.

Antigas casas de La Spina (demolidas e hoje Via della Conciliazione), Piazza del Popolo e Ponte Milvio, atingidos pela enchente
Se atualmente, temas como as mudanças climáticas, o impacto do aquecimento global e inundações estão em pauta nas principais mesas de negociações, há séculos a cidade eterna alimenta uma relação de atração e temor com o Tevere ou o rio Tibre.

Hidrômetro no Largo San Rocco, próximo à Ara Pacis ou Altar da Paz de Augusto, indicando a cheia de 1821
Do Lungotevere há quem mantenha uma certa distância de segurança. Não olha além das paredes maciças o costeiam. Não desce os seus degraus consumidos. Não corre o risco de cruzar com um rato ou mendigo. Outros, ao contrário, aproveitam para fazer uma pausa em suas margens. Para admirar os praticantes de canoagem ou as águas que desenrolam-se rapidamente como o fio de um carretel.
Os turistas aproveitam as barraquinhas e o clima alegre ao redor do rio no verão, mas nem imaginam que o Tibre já foi causa de várias inundações que a cidade relembra até hoje.
Uma das mais graves aconteceu em 1870. Cerca de 17 metros de água que alagou a capital. Foi depois desse trágico evento que foram construídos os altos muros, chamados de muraglioni, que evitam possíveis enxurradas e alagamentos. A obra durou quase meio século e só foi concluída em 1926. Ainda hoje, passeando pela cidade eterna, você pode encontrar placas de mármore e hidrômetros que indicam as inundações na cidade.
Imaginem que a mais antiga é de 1276. É escrita com caracteres semigóticos e fica no interior da Via Arco dei Banchi, nos arredores do Castel Sant’Angelo. A placa lembra da inundação ocorrida no dia 2 de novembro do mesmo ano e antigamente estava localizada na igreja de San Celso e San Giuliano.
Um dos piores momentos enfrentados pelos romanos foi o alagamento de 4 de dezembro de 1495. Edifícios foram completamente destruídos e presos morreram afogados. Poucas décadas mais tarde, em 1530 e em 1557, novos alagamentos derrubaram a igreja de são Bartolomeu, na ilha Tiberina.
A maior catástrofe ocorreu com as fortes chuvas de 1598. As águas do rio atingiram as casas do Rione Borgo, da ilha Tiberina e do antigo Porto di Ripetta e uma placa colocada ao lado da igreja de Santo Spirito in Sassia afirma “fin qui crebbe il Tevere nella stessa notte della nascita del Signore” ou “Até agora o Tibre cresceu na mesma noite que o nascimento do Senhor. “
Naquela noite, dois arcos da Ponte Emilio desabaram e a partir de então a construção passou a ser conhecida como Ponte Rotto ou Ponte Quebrada. Você ainda consegue vê-la se passear pelas margens do Tibre.
A lembrança dessa e de outras cheias foram registradas na fachada da basílica de Santa Maria Sopra Minerva, ali pertinho do Panteão.
No século XIX, mais precisamente em 1805, outro alagamento ocorreu quando o Papa Pio VII estava na França para presenciar a cerimônia na qual Napoleão Bonaparte foi coroado. Mais tarde, em 1870, lugares como o bairro de Trastevere e a Piazza del Popolo foram cobertos de água e finalmente começaram as obras para erguer os muraglioni.
Descobrir as placas espalhadas pela cidade é entrar em contato com o seu passado e aprender com ele. Roma e o Tibre são uma coisa só e o rio, como um morador ilustre, exige respeito.