Passear pelo bairro de Trastevere, em Roma, sem turistas

Passear pelo bairro de Trastevere, em Roma, nos dias logo após o fim do rígido lockdown provoca um misto de sensações. O governo prevê a livre circulação entre as 20 regiões do país e a reabertura das fronteiras italianas para os cidadãos da área Schengen a partir de 3 de junho. Portanto, por enquanto, pelas vielas do rione não se ouve sotaques estrangeiros.

Para quem não sabe, Trastevere é um dos bairros históricos e mais pitorescos da capital. Seu nome deriva do latim “trans tiberim, que significa “além do Tibre (o rio que atravessa a capital)”.

É quase uma cidade dentro da cidade. Alberto Sordi, um dos mais famosos atores cômicos italianos e “trasteverino”, contou que na década de 30, quando caminhava para chegar a pé até a Piazza Venezia, os vizinhos apareciam na janela e perguntavam “aonde você vai?” e ele respondia “para Roma”.

Como acontecia em diversas cidades da província, até o período pós-guerra não era raro encontrar em Trastevere casas com banheiro externo e aquecidas graças ao carvão ou lenha como aquela vendida na “bottega der sor Angelini”, um empório histórico, na Via della Luce, cujo proprietário faleceu em 2016, aos 93 anos de idade.

Com o passar do tempo e a difusão do turismo low cost, Trastevere transformou-se em uma das palavras-chave em sites para aluguel de temporada, como Airbnb. O preço dos imóveis no bairro pode superar 10 mil euros por metro quadrado. E muitos dos turistas que disputam o apartamento com a melhor localização são os mesmos que, em seguida, lamentam-se porque são prédios sem elevadores, com fachada descascada e às vezes sem a comodidade do ar condicionado, já que imóveis com vínculos históricos e paisagísticos nem sempre podem ser reformados.

Há quem evidencie o fato que o bairro tenha se tornado uma espécie de parque de diversões. Que cedeu a sua alma popular e “verace” a estrangeiros à procura de trattorie pouco autênticas com cardápios multilíngue ou a jovens que passam a noite na Piazza Trilussa (em homenagem ao poeta romano) depois de um tour etílico a base de coquetéis de nomes improváveis.

A verdade é que não foi só Trastevere que sofreu uma transformação. Segundo as estatísticas, cerca apenas 33 mil pessoas são residentes no centro histórico da capital. Em outras palavras, a área mais nobre da cidade eterna não é território dos próprios romanos. Roma apostou várias cartas no target “turismo internacional” e, segundo o jornal local Il Messaggero, 90% dos hotéis da capital ainda não reabriram totalmente.

Antes da pandemia, circulando pelos becos e ruelas de Trastevere, era comum ser abordado por garçons que improvisavam palavras em inglês ou francês na tentativa de te convencer a entrar em uma osteria. E ao responder em italiano ele replicava algo como “sorry”.

Passeando por Trastevere logo na primeira semana de reabertura pós-lockdown, a sensação é que sem a ambição de ser o palco para a movida estrangeira, o bairro tenha relaxado, em todos os sentidos. Como se, sabendo que não receberá hóspedes, tenha deixado de se pentear ou afrouxado o cinto.

Depois de escondidos ou espremidos na toca, os rostos de idosos são, de novo, os protagonistas da praça. Reúnem-se em uma mesinha nos arredores do Bar San Calisto para jogar baralho e jogar conversa fora. Caminham silenciosamente pelo bairro, de bengala, sem cruzar com o vai e vem das Vespas alugadas pelos turistas. Estendem sem pudor suas roupas nos varais do Vicolo del Cedro.

Os romanos voltam, lentamente, a ocupar legitimamente um lugar de destaque em Trastevere. Vão até o bairro para chegar até à doceria Valzani, na via del Moro, onde se compra a torta Sacher preferida do diretor de cinema Nanni Moretti.

Ou simplesmente para entrar na igreja de Santa Maria in Trastevere, depois de desinfetar as mãos, sem invadir o selfie de um americano, e encontrando uma multa no para-brisa, um sinal de retorno à rotina.

Depois de meses sem manutenção, a grama invadiu várias partes do bairro. Comerciantes com um metro na mão medem a distância entre os sinais adesivos que deverão ser grudados no chão.

Proprietários de restaurantes inventam novas soluções para evitar o contato direto com os clientes, como uma janela improvisada entre caixas de vinho, usada para entregar uma refeição take away.

Há quem aproveite para dar nova dignidade ao portão pichado.

Quem, como eu, viva com alegria o momento de um cappuccino degustado no bairro, quase não acreditando em um prazer reconquistado, mesmo que com algumas limitações.

Quem aproveite os dias de primavera para pedalar nas margens do Rio Tibre ou tomar sol enquanto escuta o barulho do rio.

E quem, como a figura da atriz Anna Magnani no papel de uma heroína de desenho animado, pisque os olhos, arrume o penteado e sussurre algo como “Trastevere si rialzerà!” (Trastevere se levantará!).

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