DiárioSexto Sentido

Preparando o amanhã com morangos no mar e sardinhas na floresta

Existe um instrumento ou uma escala para medir a intensidade de diferentes tipos de medo? É lícito falar em “receio pelo futuro” quando ainda enfrentamos, cotidianamente, o drama de uma alta taxa de mortalidade causada pelo Covid-19?

Aqui na Itália estamos nos preparando para a chamada Fase 2, aquela que depois de um rígido período de lockdown prevê a abertura gradual de algumas atividades industriais e comerciais e o convívio com o coronavírus.

É quase um tabu colocar em pauta a ansiedade e o pavor provocados pelo pensamento que seremos catapultados em uma realidade desconhecida e mais apavorante do que a reclusão forçada em casas com muros insuperáveis e relações estreitas asfixiantes. Não é possível romantizar sempre a suposto idílio de uma vida dentro de quatro paredes, principalmente nos casos de mulheres que convivem com a violência doméstica.

Como em Second Life, na Fase 2 cada um de nós terá o próprio avatar. Simularemos uma nova vida e novas regras em terras ermas que voltarão lentamente a se povoar. Aprenderemos o bê-a-bá e interiorizaremos regras que não inventamos.

Imaginem um recém-nascido. Um ser comparável a uma tela branca ou a uma escultura moldável com o passar dos anos. Que com o tempo, no bem e no mal, absorve espontaneamente modelos de comportamento, regras de convivência social, que codifica hábitos, tradições, se reconhece e se espelha em seus semelhantes.

Conseguiram visualizar esse serzinho? Agora tentem quantificar o impacto de um mundo nunca visto na vida um garoto nascido e crescido em um contexto totalmente diferente, como o protagonista de O pequeno príncipe, a obra-prima de Antoine de Saint-Exupéry.

Assim seremos nós, italianos, em uma realidade reconstruída não em um estalar de dedos, em poucos meses, mas elaborada estrategicamente para tentar conter o avanço de um inimigo invisível.

Abrindo a porta e nos sentindo autorizados a sair, caminharemos lentamente, como se pisássemos pela primeira vez na superfície lunar. Isso me faz pensar em um filme que assisti recentemente na Netflix, A Trincheira Infinita. Baseado em fatos reais, conta a história de um homem que, durante a Guerra Civil espanhola e no período pós-guerra, escondeu-se em sua própria casa por 33 anos. Temendo retaliações, mesmo depois da anistia, ao sair de casa ele se sente desorientado, arredio à realidade.

E nós? Como reagiremos ao reencontrar amigos e parentes que não víamos há tempos? Ao fato de nos acostumarmos à ideia de comunicar emoções com os olhos e não com um sorriso nos lábios? Seremos capazes de conter a necessidade espontânea de abraçar uma pessoa amada? Ou de frear o medo de ser mal interpretado ao cometer, involuntariamente, um gesto imprudente como um aperto de mãos?

Não há cartilha que ensine, em poucos dias, as novas regras de convivência social em um mundo nunca antes imaginado. Para responder ao novo, no entanto, uma lição de fantasia e abstração da realidade, podemos aprender do visionário escritor infantil Gianni Rodari. Ele disse: “Alguém veio me perguntar: quantos morangos crescem no mar? Eu respondi sozinho: a mesma quantidade de sardinhas na floresta”.

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