viajar é desvirtualizar
Sexto Sentido

Viajar. A arte de desvirtualizar e enfrentar a vida real

De uma certa maneira, viajar é “desvirtualizar”. Caso contrário, você não enfrentaria milhares de quilômetros e voos intercontinentais para provar a sensação de pisar naquela areia. Não desafiaria a altitude e sua capacidade pulmonar para  respirar o ar rarefeito daquela montanha. Não faría caras e bocas até aprovar o selfie perfeito diante de uma das sete maravilhas do mundo. Para isso existe uma alternativa mais simples e econômica chamada Photoshop.

Do mesmo jeito, não aprenderia um novo idioma na esperança de interagir com estrangeiros, para explorar outras civilizações. Não perderia horas de sono em longas conexões para, no dia seguinte, abraçar um amigo distante. Em minha vida de teenager era inscrita no pen pal, algo que hoje, aos olhos de um millenial, pareceria tão antigo quanto a venda de panelas e colchões na TV aberta.

Viajar é desvirtualizar

Para quem não sabe, se tratava de um programa de amigos internacionais por correspondência. O legal é que além de treinar uma língua, muitas vezes as amizades saíam do papel para a vida real. Viajei um dia inteiro em um trem regional pela Grécia para encontrar um amigo em Thessaloniki e, pelo mesmo programa, uma amiga neozelandesa acabou sendo hóspede em casa, no Brasil.

O ser humano, e  ainda mais aqueles afetados pela síndrome de wanderlust,  é movido pela curiosidade, é atraído pelo diverso. Se não fosse assim, sua “fome” de viajar seria saciada folheando o catálogo eletrônico de uma agência turística ou de um blog de viagens como o Post-Italy.com

Viajar é desvirtualizar

Fiquei pensando nisso depois de ouvir duas notícias recentes: a inauguração de um supermercado sem caixas, em New York, e o crescimento exponencial de perfis no Facebook de pessoas mortas, mas cujas páginas são administradas por parentes. Qual a relação entre essas duas notícias aparentemente distantes?

Aqui na Itália, principalmente nos pequenos vilarejos, ainda é comum encontrar mercearias. Lugares que vendem um pouco de tudo e que ainda funcionam como espaço convivial. Enquanto aguardam o corte de 200 gramas de presunto e a escolha do pão, os clientes trocam opiniões sobre o clima (sempre frio, chuvoso ou quente demais), sobre a polêmica política do dia, sobre o pênalti justo ou injusto.

Viajar é desvirtualizar

Nas grandes metrópoles, ao contrário, os supermercados estão cedendo espaço ao sistema de pagamento self-service, às compras on-line. O bate-papo com a caixa ou com o seu predecessor na fila é cada vez mais raro. No metrô ou nos parques, preferimos sentar em um assento ou um banco longe daquele já ocupado. E, possivelmente, nos isolamos com os fones de ouvido.

A praça, que por excelência sempre foi na Itália o palco da socialização, está sendo substituída pela agorà virtual. Nas redes sociais, nos descobrimos maestros na arte da retórica. Digitamos rapidamente agressões verbais que não admitem contra-ataque Colocamos em pauta assuntos que conhecemos só superficialmente, mas que estão entre os trending topics do Twitter. Improvisamos na arte da conquista mas, na vida real, somos incapazes de sustentar o olho no olho por mais de alguns segundos.

Viajar é desvirtualizar

Voltando à notícia sobre os mortos no Facebook, penso no por que obstinar-se em manter ativo o perfil de pessoas que já não estão mais entre nós. Em tentar alimentar vínculos que, provavelmente, eram só virtuais. Quantos amigos dos sobreviventes eletrônicos eram realmente amigos? Daqueles que ligam para saber como você está. Que te convida para uma pizza. Que te abraça.

A verdade é que não sabemos mais como lidar fisicamente um com os outros. É mais fácil e mais imediato bloquear um contato ou um paquera indesejável, um parente insistente, do que perder tempo para alimentar uma discussão com o seu interlocutor, por mais estéril que ela possa parecer, ou para explicar pessoalmente as suas válidas razões para evitar um encontro, para encerrar qualquer conexão.

Viajar é desvirtualizar

E o que tudo isso tem a ver com as viagens? Virtualmente, nos deslocamos em um mundo sem fronteiras nem limites geográficos. No mundo real, as barreiras são aquelas que nós mesmo criamos. Ao cruzar países, mas suspeitar daquela com o véu ou daquele com o turbante. Ao pensar duas vezes antes de estender a mão a alguém porque “exótico” demais. Ao interpretar o outro segundo a cor de sua pele. Ao classificar negativamente um povo inteiro pelos erros de alguns. Em solo estrangeiro, ao não arriscar um “obrigado” ou “por favor” com medo de errar a pronúncia.

Viajar é colocar em jogo a própria identidade. É adequar-se continuamente a novas pessoas, a diferentes circunstâncias. É permitir a abertura, correr riscos que o mundo virtual não oferece. Aparentemente, as redes sociais nos conectam um universo livre de barreiras, mas em troca de uma pseudo-ilusão de controle, de segurança, nos condenam ao imobilismo.

Se viajar é desvirtualizar, por quê não tentar? A fila do supermercado ou o deslocamento no metrô podem ser ótimas ocasiões para interagir com a vida e com personagens reais, de carne e osso. Pelo menos até que eles não sejam substituídos definitivamente por uma second life.

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