
A experiência de visitar o memorial de Auschwitz-Birkenau
Todos os anos, 27 de janeiro é a data dedicada ao Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Aqui na Itália, ela é chamada de Giornata della Memoria.
Escrevi diversos artigos sobre os lugares símbolos da perseguição aos judeus em Roma e em outras cidades italianas, mas há tempos planejava visitar o Museu de Auschwitz-Birkenau, na Polônia.
Claro que não é possível criar um ranking das metas que mais representam o horror antissemita, mas em Auschwitz-Birkenau é impossível não pensar em uma ferida aberta, que deixou uma cicatriz profunda. É o espelho de uma desumanidade tão atroz ao ponto que ainda hoje existem pessoas que insistem em negar a Shoah.
Minha viagem começou por Cracóvia, uma cidade onde em bairros como Kazimierz, antigo distrito judeu, você encontra diversos vestígios do passado e começa a se familiarizar com a história da ocupação nazista. Imaginem que com a perseguição aos judeus a cidade perdeu cerca de um quarto de sua população.
Esse vazio incomensurável é muito eloquente na Praça dos Heróis do Gueto (Plac Bohaterów Getta), onde 70 cadeiras distanciadas simbolizam, em um monumento, a ausência. Antigamente ali existia um mercado e uma farmácia inaugurada em 1909 por Tadeus Pankiewicz.
Nessa praça era obrigados a se reuniar os judeus que seriam deportados, levando consigo poucos objetos pessoais ou movéis, espelhos. Nenhum deles sabia qual seria o seu destino. Aqueles que ousavam se rebelar eram executados e o farmacêutico católico Pankiewicz assistiu diversas cenas dramáticas de violência. Salvou inúmeros judeus e por esse motivo foi considerado “justo entre as nações” pelo Yad Vashem. Sua história é contada no livro “O farmacêutico de Cracóvia”, uma obra que aconselho você a ler não tanto pelo seu valor literário, mas pela veracidade dos fatos narrados.
A porta de entrada para visitar Auschwitz-Birkenau é a cidade chamada Oświęcim. Para visitar os campos de concentração, sugiro que planeje a sua visita com bastante antecedência. Explico melhor. É possível visitar o museu de forma independente, com entradas limitadas. No entanto, é mais aconselhável reservar um tour guiado com um educador, na língua de sua preferência.
No site https://visit.auschwitz.org você deve selecionar uma data e, em seguida, a opção “visits for individuals”. Na tela seguinte você verá os idiomas e horários disponíveis para a visita que dura cerca de 3h30. As vagas não são muitas, portanto se programe bem. Saindo de Cracóvia, calcule que esse tipo de visita levará um dia inteiro.
Os preços são exibidos na moeda local (110 em zloty polonês), menos de 30 euros, e no dia programado você deve se apresentar no museu com pelo menos 15 minutos de antecedência. Chegando lá você recebe um adesivo para colocar na roupa e se dirige até a seção dedicada ao idioma reservado para a visita. Aguarda a guia, que distribuirá fones de ouvido aos participantes.
O educador fala pausadamente, em voz baixa, e não conversamos com os outros participantes do grupo durante todo o percurso. Essa não é uma viagem como outra qualquer, mas quase uma peregrinação.
As reservas nem sempre funcionavam assim. O sistema mudou porque o número de visitantes aumentou exponencialmente nos últimos anos e a aglomeração provocava muito barulho e tumulto, uma falta de respeito por um local que não é um parque temático.
Hoje tudo é super organizado, quase como uma cadeia de montagem turística. Somente um grupo entra em uma sala expositiva de cada vez. Subimos e descemos escadas atônitos e cabisbaixos, ouvindo um educador que tenta traduzir em palavras a liturgia do horror, a rotina da vida (brevíssima, salvo exceções) nos campos de concentração.
Estive lá em outubro, em um dia de sol, e confesso que até essa condição climática me parecia um privilégio incompatível com a memória das centenas de pessoas que enfrentaram a dureza de Auschwitz-Birkenau.
A visita começa por Auschwitz. Passando sob a escrita Arbeit Macht Frei (“o trabalho liberta”), que não é aquele original, roubada, folhas caem espontaneamente das árvores e um calafrio percorre o meu corpo. É como se na ausência, na sensação perene de morte, uma presença invisível nos acompanhasse do início ao fim.
O cenário é aquele que há décadas faz parte da memória coletiva: arame farpado, edifícios de blocos de tijolos vermelhos, muro de fuzilamentos, crematórios, celas minúsculas onde era impossível respirar e onde concentrava-se um número improvável de corpos, longos corredores com fotografias de rostos inexpressivos que se esforçam em esboçar um sorriso gélido. Impossível não notar que as datas que assinalam a entrada e a morte de cada um deles, na maioria dos casos, não superam poucos meses.
Nos foi explicado que não encontramos fotos de italianos porque eles chegaram ao campo entre o outono de 1943 e 1944, e nesse último ano os nazistas começaram a destruir as provas do extermínio frenético.
Auschwitz é menor que Birkenau, mas é ali que se encontram objetos que são o verdadeiro emblema da crueldade humana. Passamos diante de grandes vitrines com toneladas de cabelo (usados até para preencher travesseiros), óculos, malas, próteses, louças e milhões de sapatos. A educadora que nos acompanha explica que tudo era reaproveitado pelo Terceiro Reich e enviado para a Alemanha. O amontado desordenado e indistinto nos dá a sensação de que vidas humanas não tinham nenhum peso.
Quem assistiu o filme “A zona de interesse” deve se lembrar da cena final na qual funcionários da limpeza do museu se dedicam normalmente e sem escandalizar-se às próprias tarefas, como passar o aspirador, nessa área de Auschwitz.
Será que nós, seres humanos, nos acostumamos até com a crueldade mais inverossímil? Os novos episódios de antissemitismo e o terrível silêncio internacional diante do recente massacre da população palestinense me faz pensar que não aprendemos a lição e que a intolerância ainda é uma constante. Provavelmente, daqui a décadas, as futuras gerações nos perguntarão “onde estávamos quando tudo isso aconteceu?”
A última parte da visita à Auschwitz culmina com a vista da câmara de gás que se mantém de pé, ligada ao crematório.
Em seguida, junto com a educadora o grupo se prepara pagar pegar o ônibus gratuito que transporta os visitantes até Birkenau, que fica a cerca de três quilômetros. Chegando lá, a primeira impressão é aquela de um lugar imenso.
A maioria de suas barracas foi destruída e o cenário é aquele e um vasto campo verde dominado pelos trilhos dos trens que transportavam os prisioneiros. Uma máquina mortal mais que eficiente.
No interior das barracas encontramos os “beliches” de pedra sufocantes e sem colchão no qual dormiam os judeus. Até disputar um lugar na parte alta ou baixa (asfixiante e com pouca ventilação) era fundamental para sobreviver.
Poucas barracas permanecem abertas ao público e a educadora explica que assim que cada uma delas ficava lotada, atingindo um número de até 700 pessoas, normalmente a cada três dias, grande parte dos prisioneiros era executada para ceder espaço a novos deportados. Um esquema de repetição e horror.
No final do percurso noto que uma das visitantes do nosso grupo tem origem brasileira. Ela me conta que sua bisavó, que tem um sobrenome importante, Levi (como o autor italiano de “Se isto é um homem), foi uma das vítimas da perseguição. Ela superou os cem anos de idade, desafiando quem não a considerava digna de ser uma protagonista da história.
O nazismo estava convencido que não havia limites para a “indústria” do extermínio. Só não previa que até a morte ousaria desafiar as suas regras, dando-lhes as costas, envergonhada com tamanha perversidade.
No campo de Birkenau há quem deixe uma rosa. Eu tento tocar algumas pedrinhas que ficam nos arredores dos trilhos da ferrovia. Me pergunto quantos passos pesados de seres humanos pisaram por lá.
A visita se encerra e continuamos em silêncio. Essa não é uma visita que você “metaboliza” imediatamente. Os dias seguintes são marcados por reflexões. Dedicar tempo ou um pensamento a quem perdeu a vida nos campos de concentração é um exercício necessário. Não só na Giornata della Memoria.