DiárioSexto Sentido

É possível esquecer a língua materna morando no exterior?

Eu tinha um avô espanhol que apesar de viver no Brasil há décadas mantinha uma forte ligação com a sua língua materna. Desde os meus primeiros anos de vida, quando voltava da escola ele me contava alguma fábula ou me ensinava uma cantilena.

Me lembro perfeitamente de uma delas, que servia para estimular as crianças a usar os dedinhos da mão.

“Periquito,                 

su hermanito              

pide pan.                    

Éste le dice que no lo hay.                

Éste le cierra la puerta                      

y acostar, acostar, acostar”   

De vez em quando, espontaneamente, quando fazia a ele uma pergunta ou quando ele escutava no rádio um jogo de futebol, pronunciava alguma expressão espanhola.

Quando você mora há tantos no exterior, um dos “contras” é o fato que a sua familiaridade com a língua materna diminui gradualmente.

No começo não é tão evidente, mas com o tempo isso muda. Com o passar dos anos, você está tão envolvido com o idioma de sua pátria adotiva que os pensamentos fluem naquela que seria a sua segunda língua.

Eu raciocino, reclamo e sonho em italiano. Até quando entrevisto alguém, em português, as notas que acrescento em meu Moleskine ou no celular são escritas em italiano. Só que me emociono muito quando ouço uma música em português e até em espanhol.

Eu não aprendi a língua na marra. Quando cheguei na Itália já falava e escrevia nesse idioma porque por anos havia frequentado um curso no Brasil.

Por um lado, isso facilitou muito a minha integração. Por outro, hoje mesmo tenho mais facilidade para escrever em italiano do que em português.

Isso significa que quando redijo um artigo utilizando minha língua materna preciso pensar duas vezes antes de identificar a expressão correta, pensar na grafia, me esforçar para não adotar vícios de linguagem adquiridos do italiano.

Uma amiga querida me fez essa observação e preciso concordar com ela. Pode ser, por exemplo, que em vez de “me machuquei” eu adote a expressão “me fiz mal” (do italiano, mi sono fatta male).

Não é só uma questão linguística ou sintática. Morando há 21 anos aqui a minha forma mentis mudou. 

Sou um híbrido assim como era o meu avô. E talvez sem querer ele tenha colaborado a mudar o meu destino para sempre.

Em seu misto de línguas, me ensinou que nas incertezas, nas imprecisões e nas linhas tortas nascem as melhores histórias.

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