Sexto Sentido

Como uma nota desafinada. O que a história de Ennio Morricone me ensinou

Elas podem ser chamadas com letras ou siglas distintas para sublinhar as suas peculiaridades, mas que se trate da geração X, Y, Z, alpha ou beta, há muito mais semelhanças do que diferenças entre elas.

Penso, por exemplo, em como enfrentam o tão temido momento do vestibular, na separação involuntária dos amigos do colégio, no pacto nunca verbalizado de estradas que correrão paralelas, mas que prometem se encontrar, no peso de uma decisão que é associada ao conceito de “para a vida toda”.

O coração que explode no peito, o medo do futuro, a preocupação com talentos que devem coincidir com as exigências do mercado de trabalho. Os olhos que procuram ansiosamente o próprio nome em uma lista de aprovados como se aquela posição fosse uma passagem para a felicidade ou um bilhete sem volta.

Esses últimos dias esse é um tema no qual pensei bastante. Primeiro, por exigências familiares. Segundo porque assisti recentemente o filme documentário Ennio, de Giuseppe Tornatore. O protagonista, como podem intuir, é o compositor, arranjador e diretor de orquestra Ennio Morricone, falecido em 2020.

O mundo o conhece como autor de trilhas sonoras de filmes memoráveis e como prêmio Oscar, mas nem todo mundo sabe que ele pensava em se inscrever na faculdade de Medicina. A música foi imposta a ele pelo pai, que tocava trompete.

Por vários anos, ele não a apreciava. Era obrigado a tocar o mesmo instrumento do pai em clubes musicais onde chegava a rachar os lábios e recebia em troca poucas moedas. Associava o trompete à humilhação de um músico, quase invisível, que ganhava uns trocados para sobreviver.

Em casa, a vitrola do pai era uma companhia assídua. Ele realizou sua primeira composição aos seis anos de idade, mas nunca a mostrou a ninguém.

Frequentou o conservatório e, mais de uma vez, tirou notas baixas. Não era o aluno predileto. Aceitou repetir exercícios musicais medíocres.

Quando começou a fazer arranjamentos para filmes western, foi acusado pelos seus ex-professores de “corromper” a verdadeira música. O que os eruditos não sabiam é que essa ele se dedicava a essa suposta “arte menor” com rigor matemático. Escrevia mentalmente seus acordes porque as notas musicais permeavam seu cérebro como em uma sinapse perfeita.

Inventou uma nova linguagem musical. Mesclava efeitos sonoros e instrumentos inusitados. Suas trilhas sonoras se tronaram mais famosas que os próprios filmes para os quais tinham sido criadas.

Já famoso, sua mãe insistia para que ele convidasse o próprio pai a participar de suas criações, mas ele se negava. Dentro de si, tinha consciência que ele não tinha mais o talento de quando era jovem e não queria expô-lo. Por isso evitou usar o trompete em suas trilhas sonoras, até a morte do pai.  Um gesto de delicadeza que só confessou no filme.   

O tempo confirmou que talvez o destino que ele acreditava ter sido imposto pelo pai – a música – já morava nele antes mesmo que ele se desse conta. E que pai e filho, assim como as notas de uma partitura que são colocadas lado a lado, podem parecer casuais, mas juntas compõem uma sinfonia perfeita.

Dedicados a todos os pais e filhos da gerações  X, Y, Z, alpha ou beta que, muitas vezes, se sentem como uma nota desafinada.

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