Desmistificando a Calábria. Descobrindo Cosenza, cidade em contínua evolução
Que tal explorar uma terra que mescla a cultura de três países em um? A Calábria é um mosaico que une Grécia, Itália e Albânia e Cosenza é uma ótima base para começar a descobri-la
Calábria, uma meta ainda pouco explorada pelos turistas brasileiros. Ao imaginar uma viagem para essa região, aposto que sua mente fará aquela frequente comparação que assimila as características econômicas e socioculturais do nordeste brasileiro ao sul da Itália: menos densidade demográfica, geografia natural incompatível com a indústria, pouca oferta cultural, terra de migração e assistencialismo social, válida como destino de férias por seu extenso litoral.
Essa equação maniqueísta que contrapõe o norte e o sul, polarizando culturas complementares e remetendo a uma ótica de hierarquização, não faz juz à identidade cultural e às potencialidades de cada região. Uma não é subalterna à outra.
Continuar a etiquetar ou associar a Calábria ou o inteiro sul da Itália a estereótipos reducionistas geram um abisso cultural. Vale lembrar que a Itália como o país que conhecemos só foi unida em 1861 e que a diversidade de seus antigos reinos e estados não cabe em uma ótica dicotômica.
Seria míope negar que nas áreas urbanas e rurais dessa região do país não existem desigualdades, mas elas também estão presentes em outras áreas do país, inclusive nas grandes metrópoles.
A agricultura ainda é um setor estratégico na Calábria. A região é famosa pela produção de frutas cítricas como as clementinas cultivadas na Piana di Sibari, o bergamotto – usado pela indústria da perfumaria – figos, azeites, batatas, cogumelos, queijo como o caciocavallo podolico, o peperoncino, principal ingrediente do ensacado “nduja”, o alcaçuz, vendido na Itália na forma de latinhas de balas como aquelas da histórica fábrica Amarelli e vinhos como o renomado Cirò Doc ou o Nerello
Esse cenário, no entanto, está se diversificando e além de diversas atividades no setor terciário – não só ligadas à indústria do turismo – essa região, ao contrário do que muitos imaginam, tem uma forte vocação cultural. Você sabia, por exemplo, que nas colinas de Rende, nos arredores de Cosenza, fica o maior campus universitário do país, aquele da Università della Calabria?
Hoje, cidades como Cosenza são sinônimo de polo cultural, start ups e um olhar que mira o futuro, assim como aquele do ex-prefeito Giacomo Mancini, aquele que decidiu criar uma área reservada para pedestres na cidade e que foi homenageado com uma estátua de bronze.
Para descobrir o seu lado mais inédito, o turista estrangeiro precisa explorar a região sem pressa. Para orientar quem busca informações sobre a Calábria, quero compartilhar dicas e um itinerário para revelar metas inspiradoras, antigas ou contemporâneas, mas sempre fora dos estereótipos.
Conhecer a Calábria e descobrir a Itália, a Grécia e a Albânia em uma única viagem
A Calábria é um caleidoscópio de culturas. Do lado do mar Jônio, a partir do século VIII a.C estabeleceram-se os colonizadores gregos que fundaram a Magna Grecia. Já nos arredores do mar Tirreno os protagonistas foram os Bruzi (em latim, Brettii), população que depois de servir os vizinhos lucanos (moradores da Lucania ou Basilicata), decidiram atravessar as montanhas que separavam as regiões e fundar uma nova cidade sob a colina Pancrazio. Nascia assim Cosenza, protegida por sete colinas e banhada por dois rios: Crati e Busento.
Por volta do IV século a.C, de servidores passaram a ser guerreiros, até serem dominados pelos romanos em 270 a.C.
Por essa terra encontramos vestígios das dinastias dos Svevi (o castelo de Cosenza é um exemplo), longobardos, bizantinos e normandos que tentaram “latinizar” novamente o território. Hoje, é uma síntese entre diversas culturas aparentemente distantes, mas complementares.
O que poucos sabem é que na Calábria e, em especial na província de Cosenza, existe uma forte presença albanesa, as chamadas comunidades arbëreshë, como aquelas de 27 cidades como Falconara albanese, Vaccarizzo Albanese, Santa Sofia d’Epiro e Frascineto que conservam costumes, tradiçoes e folclore albaneses. Em algumas delas é possível assistir longas missas em três idiomas: italiano, albanês antigo e grego.
Os albaneses chegaram naquela que hoje conhecemos como Calábria quando ela fazia parte do Reino de Nápoles, comandado pelo rei Alfonso V d’Aragona e seu filho ilegítimo, Ferdinando. Para reprimir um complô, ele pediu ajuda a George Kastrioti Skanderbeg, soberano albanês e líder militar aliado de diversos monarcas europeus.
Para recompensá-lo, ele presenteou Scanderbeg com algumas terras que foram ocupadas pelos albaneses quando o país foi invadido pelos turcos a parti do século XIV.
Cosenza entre passado e futuro
Cosenza é uma cidade em contínua evolução e uma agradável surpresa que mescla o seu passado com uma grande pitada de fermento cultural e arquitetônico.
Metáfora dessa cidade eclética é a vista da ponte San Francesco di Paola projetada por Santiago Calatrava, que contrasta com a vista do seu centro histórico, das cúpulas da igreja de San Domenico e o rio Crati.
Eu tive a chance de fazer um passeio noturno por Cosenza. Como a coruja de Minerva que abre suas asas somente com o início do crepúsculo ou como um filósofo que tenta entender o desenrolar constante da história, desvendar Cosenza no final do dia é ainda mais prazeroso.
Comece suas explorações pelo Corso Telesio e pelo Duomo dedicado a Santa Maria Assunta.
Talvez você não saiba que o seu Duomo de Santa Maria Assunta. Em seu interior, não perca a chance de admirar a capela dedicada à Madonna del Pilerio. Ela é venerada desde 1576, quando uma epidemia de peste atingiu a cidade. Um devoto que teria pedido a intervenção divina viu no rosto da Virgem uma mancha da peste e a interpretou como a sua vontade de liberar a população da tragédia.
A partir de então a Madonna del Pilerio se tornou a padroeira de Cosenza. Na capela, o ícone bizantino com a sua imagem retrata com uma coroa com onze círculos. Eles representariam os apóstolos, com exceção de Judas, o traidor. Nos braços ela carrega um Cristo insólito, com um corpo de criança e rosto adulto, como se já tivesse consciência de seu futuro destino.
Os anjos do altar de mármore da capela são obras-primas realizadas por Giuseppe Sammartino, o mesmo escultor do Cristo Velato, situado na Cappella Sansevero, em Nápoles.
Na catedral de Cosenza também ficam os mausoléus de Enrico VII de Hohenstaufen, filho de Federico di Svevia, e aquele de Isabella d’Aragona. Ao acompanhar o marido Felipe, rei da França, durante as Cruzadas, ela teria caído do cavalo, grávida, no percurso de volta para a França. Seu corpo foi enterrado junto com o feto no Duomo de Cosenza. A carne era considerada impura e separada dos ossos, que foram transportados até a catedral de Saint Denis, em Paris.
Relíquia preciosa
Depois do Duomo, faça uma pausa no Museo Diocesano di Cosenza, onde encontra-se uma relíquia preciosa, a chamada “Stauroteca”, a cruz bizantina doada à igreja por Federico II em 1222. Se trata de uma das obras mais preciosas presentes na Calábria, além dos bronzes de Riace, e estudiosos afirmam que ela contenha um fragmento da verdadeira cruz de Cristo.
Ela é decorada de ambos os lados com a técnica conhecida como Cloisonnè. Essa decoração em esmalte consiste em criar, a partir de finas fitas de ouro, prata ou cobre soldadas ao metal base, compartimentos (ou cloisons) que serão preenchidos com material vitrificável.Outra obra que deve ser contemplada é a pequena estátua de São Sebastião realizada por Angelo Rinaldi, aluno de Michelangelo, com seus músculos em evidência e um corpo que demonstra todo o seu sofrimento.
Ilustres locais
Cosenza é uma cidade de grande fermento cultural e terra de personagens ilustres. Sabia que ela é conhecida como “a Atenas da Calábria”? Na sua Piazza XV Marzo fica o teatro dedicado a Alfonso Rendano, músico que entrou para a história como o inventor do terceiro pedal do piano, o Palazzo del Governo e a Accademia Cosentina, onde estudou o filósofo e cientista naturalista Bernardino Telesio. Ele é considerado um dos primeiros inventores do método científico.
Em Cosenza também foram fuzilados os irmãos bandeira, patriotas protagonistas do Risorgimento, o movimento que lutou pela unificação italiana.
Arte lá onde você não espera
Um dos programas mais interessantes para você fazer em Cosenza é percorrer o MAB (Museo Aperto Bilotti), uma iniciativa genial. Imagine uma rua reservada para pedestres decorada com obras de arte de artistas de fama mundial como Salvador Dalì, De Chirico, Manzù, Modigliano ou Mimmo Paladino.
Em 2006, a coleção de arte dos irmãos Bilotti (na Villa Borghese, em Roma, fica o Museo Carlo Bilotti) foi doada à prefeitura local que, em vez de exibi-la em um espaço fechado, decidiu que ela deveria ser contemplada ao ar livre.
Se trata de cópias autênticas autorizadas pelas fundações que levam os nomes dos artistas e o MAB de Cosenza é, sem dúvidas, um grande exemplo de civilidade.
Os próprios cidadãos se sentem responsáveis por tutelar esse patrimônio que, durante as festas de final de ano, por exemplo, são protegidas para evitar danos acidentais como aqueles provocados por fogos de artificio.
Corso Telesio, lojas e pausas gulosas
Passeando pelo centro histórico, dedique seu tempo explorando Corso Telesio e a parte mais antiga da cidade. Antigamente a rua era chamada de Via dei Mercanti porque concentrava diversas lojas de lã e seda.
Divirta-se observando as fachadas históricas e as vitrines de locais como La Chitarreria, laboratório de um luthier, ou fazendo uma pausa gulosa na Antica Salumeria Telesio ou no Gran Caffé Renzelli para provar um doce típico como a Varchiglia. O local foi fundado em 1803 e era reduto de intelectuais.
Para provar a cozinha calabresa, reserve a Antica Locanda dal Povero Enzo (Via Monte Santo, 42) no Doc Wine (Vicolo San Tommaso, 11), ou para pratos a base de peixe no Simposio (Via Livenza, 14) em pleno centro histórico.
Mto bom! Tenho mta vontade de ficar uns dias na Calábria. Fiz uma passagem meteórica, de carro, qdo fui de Messina a Lecce.
Eu me surpreendi positivamente e fiquei com vontade de voltar logo. Ainda tenho muitas historias para contar sobre essa linda terra. 😉
Boa noite Anelise, por acaso qdo. voltar poderia dar um enfoque a cidade de Rende “colada” em Cosenza…onde proveio minha família…..Grato!
Oi Romolo! Tudo bem? Pode deixar. Rende fica tao pertinho que consideramos parte da area metropolitana bem extensa de Cosenza. Que bom saber que sua familia veio de la! Terra muito acolhedora. 🙂