Visitar e enxergar Matera além do óbvio
Como era viver nas casas escavadas nas rochas
Se existe uma cidade na Itália que “deu a volta por cima” e superou todas as expectativas, inclusive aquelas dos viajantes e das estatísticas sobre os fluxos turísticos, esse lugar é Matera, na Basilicata.
Para descrevê-la, eu poderia usar adjetivos ou até mesmo superlativos, mas nesse caso acredito que a melhor maneira de traduzir Matera para vocês, leitores, é subtrair palavras.
Prefiro deixar que o essencial fale mais alto, sugerindo um minuto de silêncio ou de reflexão diante dos Sassi de Matera, as casas escavadas nas rochas calcárias que desde o Neolítico até meados da década de 50 eram habitadas por homens, mulheres e crianças.
Há mais de 25 mil anos, naquele que era um planalto de rocha porosa e portanto fácil de ser moldada, homens escavaram grutas e criaram refúgios que a civilização moderna e acostumada a todo o conforto possível não definiria uma “casa”.
Junto com Jericó e Alepo, Matera é uma das cidades mais antigas do mundo. Observando a paisagem do Sasso Caveoso a gente nem imagina que ali, há milhões de anos, existia um antigo oceano que desapareceu, enterrado nas profundezas porque a terra um sistema vivo, dinâmico.
Com o movimento das placas tectônicas – os grandes blocos rochosos semirrígidos que reorganizaram a posição dos continentes – um de seus componentes voltou à superfície: a calcarenite. É uma espécie de areia sedimentada cujos grãozinhos são compostos por calcário e fósseis marinhos. Por isso, engana-se quem pensa que Matera seja feita de tufo. Se você observar bem os seus muros vai notar até conchinhas quase intactas. E também encontramos vestígios desse passado na recente descoberta de um fóssil de baleia na barragem de San Giuliano, nos arredores de Matera.
A parte mais antiga dos Sassi di Matera é “La Civita”, com vista para o riacho Gravina, de frente para o cenário dramático do Parque Murgia e de suas igrejas rupestres, o cenário que convenceu Mel Gibson a escolher Matera para as cenas de gravar A paixão de Cristo e que bem antes dele, em 1964, foi o palco do filme O evangelho segundo Mateus, de Pier Paolo Pasolini.
De um lado de Civita fica Sasso Barisano, localizado ao longo da estrada que sai da cidade em direção a Bari. Do lado oposto, o Sasso Caveoso, voltado para o sul em direção a Montescaglioso, lembra a forma do auditório de um teatro, com as casas dispostas em degraus.
A ligação com a vizinha Puglia
Outra página da história de Matera que nem todo mundo conhece é aquela de sua ligação com Otranto, na Puglia. Em 1481, a cidade colaborou com a defesa de Otranto durante a invasão turca, hospedando inclusive o rei de Nápoles Ferdinando I.
Um olhar atento notará na arquitetura de Matera diversos elementos que lembram a cultura da região vizinha, a Puglia, já que artesãos da ex Terra di Otranto foram convocados para decorá-la.
No mesmo período, quando os turcos-otomanos também agrediram os Balcãs, os Schiavoni, populações de origem servo-croata e albanesa procuraram abrigo em Matera. As cavidades naturais das rochas foram o refúgio perfeito para os fugitivos, que fundaram o bairro conhecido como Casalnuovo.
A diferença entre as classes sociais é ainda mais evidente a partir de 1663, sob o domínio espanhol, quando Matera desliga-se da ex terra di Otranto, da qual era parte, e se torna a capital da Regia Udienza di Basilicata. Um aumento demográfico e o aperfeiçoamento do centro urbano contribuem com uma acentuada diferenciação entre a parte mais rural e popular e o lado mais urbano de Matera.
A partir do século XVIII, expoentes da burguesia e da igreja financiam a renovação da cidade. Nasce assim o novo bairro de “case nuove”, o primeiro fora da zona dos Sassi e de Civita, com o a Via Ridola e o Palazzo Lanfranchi, antigo seminário em seguida transformado em uma escola onde a partir de 1882 o poeta Giovanni Pascoli ensinava latim e grego.
Onde nasce a inteligência
Na época, a escola tinha vista para as casas dos Sassi, onde Pascoli via de longe os seus moradores. Em 1984, ano no qual foi transferido para ensinar em outra região, ele escreveu que encerrava o seu período em Matera, “pobre cidade de trogloditas onde viveu tão feliz e tão pensativo”.
O que nem todo mundo imagina é que a inteligência não está sempre e somente entre as carteiras da escola. Foi sóa partir de 1928, em plena era fascista, que essa parte da cidade teve seu primeiro aqueduto e sistema de rede de esgotos. Antes, a sua população de excluídos havia inventado um sistema de cisternas para armazenar a água e inclusive a pendência dos tetos das casas era projetada para acumular a neve, que descongelando-se se tornava água limpa.
Os moradores costumavam aproximar os cavalos ou mula a uma reserva de água. Se eles a bebiam, era um indício de sua qualidade. Ou então usavam sangue sugas para oxigená-la.
Famílias inteiras viviam dentro das casas escavadas nas rochas junto com seus animais. Com a crise do setor pastorício, a partir dos anos 40 existia nos Sassi uma grande densidade populacional, miséria e mortalidade.
Quando Carlo Levi escreveu “Cristo si è fermato ad Eboli”, o mundo político sentiu-se no dever de encontrar uma solução para a cidade que seria definida como “a vergonha da Itália”.
Assim, em 1952 Alcide de Gasperi assinava a primeira lei que decretava o deslocamento da população da zona dos Sassi. Em 1953, foi inaugurado o primeiro núcleo habitacional, intitulado “La Martella”.
Grandes personalidades italianas como Adriano Olivetti, Ludovico Quaroni e Federico Gorio colaboraram com a idealização da arquitetura e na funcionalidade dessa nova área residencial.
A construção das casas incluía a uma pequena horta com poço na zona posterior e também um estábulo desta vez em divisão separada. Também foi projetado um teatro insólito, sem poltronas, para que cada espectador pudesse trazer de casa uma cadeira, recriando assim a sensação de comunidade, como acontecia ao compartilhar os espaços ao aberto, fora das casas dos Sassi.
Casa é onde se cria raízes
Mesmo assim, não foi fácil convencer os moradores da zona dos Sassi que aquele era um novo lar. Logo após a inaugurarão do nosso bairro, um pastor declarou em dialeto, em uma entrevista, que quem comandava eram sempre os senhores. Que ele, na nova casa, podia abrir as janelas (inexistentes nas casas escavadas nas rochas) e imaginar o mar, mas que queria a vida de antes.
A partir dos anos 80, o governo italiano investiu na reabilitação do Sassi, e os ambientes rústicos se transformaram em atração turística, inclusive em estruturas hoteleiras minimalistas e sofisticadas como um famoso albergo diffuso. Aqueles que habitavam nos Sassi anteriormente começaram a renovar os locais e, em 1993, os Sassi de Matera foram declarados patrimônio da humanidade pela Unesco.
A popularidade da cidade aumentou ainda mais em 2029, quando foi capital europeia da cultura, mas é preciso lembrar que esses reconhecimentos não são uma simples revanche e não premiam somente um patrimônio paisagístico. É um título ao valor humano dessa terra, um remédio a uma ferida.
Matera foi e ainda é uma espécie de útero que soube acolher os excluídos. Os mesmos que com a própria capacidade souberam construir vidas ali onde ninguém havia imaginado que isso fosse possível.
Onde ficar em Matera
Onde comer
Al Falco Grillaio
La Grotta nei Sassi
Sobre Matera, leia também
Matera, de vergonha nacional a patrimônio da humanidade
Turismo de raízes. Identidade italiana se reforça na cozinha
Sobre os sacrifícios dos imigrantes italianos no Brasil