
Não é só questão de passaporte. A diáspora entre as duas Itálias
Colagem verbal de algumas das reflexões que me passaram pela cabeça nos últimos dias. Porque escrevo mesmo quando não transcrevo as palavras no papel ou no digital. Escrevo mentalmente. Sensações, rostos, o começo de uma história possível.
Li diversas reportagens comentando as novas regras que restringem o acesso à nacionalidade italiana por direito de sangue, tema que havia tratado dias antes desse anúncio oficial, comentando o “mercado” dos passaportes.
O assunto é complexo e não pode ser enquadrado no perímetro das poucas linhas das redes sociais. A crítica mais frequente é a suposta inconstitucionalidade da perda de um direito e que não se pode estabelecer um corte de geração.
Vou abordar esse tema de uma outra perspectiva. Aquela de quem nasceu no Brasil, mas vive na Itália há 23 anos.
Sinto decepcionar expectativas, mas obter um passaporte não comporta, automaticamente, ser “reconhecido” como cidadão italiano. Do ponto de vista formal e legislativo sim, mas ser percebido como parte irrenunciável da sociedade italiana é uma estrada longa e repleta de percalços diários.
A permeabilidade dos italianos à moldagem de uma sociedade híbrida, composta por italianos nascidos aqui, “acquisiti” (descendentes nascidos em outros países) ou ainda por filhos de imigrantes sem nenhuma ligação de sangue com o país não pode ser imposta por lei.
É uma questão cultural. E ainda estamos distantes da multietnicidade ser considerada fisiológica aqui.
Poderia relatar inúmeros episódios cotidianos que alimentam uma diáspora interna lenta e invisível de duas Itálias que caminham paralelamente.
De um lado, a Itália composta por italianos no sangue, na pele, nos cabelos, na cadência linguística, no sobrenome com uma “doppia”. Do outro os italianos pela metade porque apesar do passaporte, corrompe a pureza de sua italianidade no documento com mais de um sobrenome, no sotaque imperfeito, no cabelo coberto com véu, na cor da pele.
De um lado, um contingente numérico. Aquele útil para exercer trabalhos braçais. Do outro, aqueles que nunca refletirão sobre o conceito da famosa frase de Max Frisch: “queriam braços, chegaram homens”.
De um lado, um país com déficit de natalidade e sistema previdenciário prestes a colapsar. Do outro, uma comunidade considerada um risco à substituição étnica”, como citado em uma declaração institucional.
O grande desafio, acreditem, não é agendar entrevista no consulado, fazer pesquisa genealógica ou pagar honorários a advogados para obter um passaporte italiano.
Se você sustenta que a Itália tem uma dívida histórica com os países que acolheram milhares de italianos no passado e que isso bastará para escancarar suas portas aos “oriundi”, engana-se. Seria como, no dia de hoje, esperar um ressarcimento, um comportamento compensador por parte de nossos colonizadores.
Semana passada, durante uma aula de francês, discutíamos sobre a língua francesa ter absorvido totalmente diversas palavras de origem árabe, como “toubib” (médico) ou “kawa” (café), só para citar algumas.
Fiquei pensando que essa contaminação, não só linguística, dificilmente aconteceria na Itália de hoje. Como é fácil sentir que estamos caminhando sobre um campo minado e é preciso máxima atenção para não ferir alguém.
Aliás, faço aqui um mea culpa.
A verdade é que interiorizamos tanto o papel de “diversamente italiano”, que mesmo com um passaporte nas mãos revelamos essa condição subalterna corroborando a diáspora entre as duas Itálias.
Me chamo Anelise, mas muitas vezes, quando me apresento em público, depois de soletrar meu nome completo dizendo: “se preferisce può chiamarmi Annalisa, come in italiano”.