Sexto Sentido

Pandemia na Itália e a síndrome de A grama do vizinho é sempre mais verde

Assim como é impossível passar diante do varal do vizinho sem espiar o seu lado mais vulnerável, sem notar imperfeições em suas peças íntimas, o mundo observa as falhas de seus companheiros de desventuras: o desempenho das outras nações no combate ao coronavírus.

É uma espécie de ritual cotidiano. Navegar entre sites de estatísticas e alarmantes títulos de jornais para comparar números. Para apontar deslizes. Para fazer cálculos e projeções improvisadas sobre um futuro que parece cada vez mais distante. Para apostar em quem será o vencedor no eterno duelo entre isolamento horizontal e vertical.

Passamos o dia cutucando a ferida, estudando o andamento das taxas de mortalidade. Nos consolando pensando que não foi só a bolsa de valores do próprio país a acionar o mecanismo do circuit breaker quando os números despencaram.

Aqui na Itália existe um provérbio popular que diz: “Mal comune, mezzo gaudio”, algo como “mal comum, meia alegria”.

Recebo perguntas diárias. Com algumas dúvidas legítimas. Outras incompreensíveis. O número de vítimas de Covid-19 na Itália chegou mesmo a superar 900 pessoas em um único dia? Idosos com mais de 80 anos não têm direito à UTI? O governador da região da Lombardia admitiu finalmente o seu erro? Os médicos vítimas de coronavírus não tinham material de proteção individual? As cenas de carros do exército repletos de corpos sem vida não deixaram vocês chocados? E poderia listar muitas mais.

É claro que, mesmo em um momento de emergência, as instituições devem prestar contas e agir no interesse da coletividade. Com certeza as ações do governo italiano podem ser criticadas e são passíveis de melhorias.

Vivemos em uma democracia e, ao contrário de nações como a Hungria, onde sob o estado de emergência o primeiro-ministro ultra-nacionalista Viktor Orban pode legislar por decretos e por tempo indeterminado, as decisões são tomadas em base ao parecer de um comitê científico e líderes da oposição e representantes de diversas partes sociais também podem opinar sobre suas ações.

O que gostaria de sublinhar é que cada país enfrentará, mais cedo ou mais tarde, o julgamento mais severo, aquele das eleições. Haverá tempo para punir ou premiar nas urnas os deméritos e os méritos de uma inteira classe política. Por isso digo que agora não é o momento de fazer comparações tout cour entre uma nação e outra.

Não é sobre a Itália, a Espanha, a França ou Alemanha. Não é sobre os Estados Unidos. Nem sobre o Brasil. Cada lugar do planeta enfrenta a pandemia partindo de diferentes contextos, seja ele econômico, social, demográfico ou sanitário.

O único ponto em comum entre os países é que, em todos eles, a crise provocada pelo coronavírus acentuou ainda mais gritantes disparidades sociais. Um gap imenso que a miopia nossa de cada dia não nos permitia enxergar. Nem potências como os Estados Unidos da América ou um país membro do G8, como a Itália, estão imunes à desagregação. Um estudo realizado pelo jornal La Repubblica estima que, nos Estados Unidos, o custo de uma internação por pneumonia entre 6 e 23 dias no país oscila entre 12,692 e 88.114 dólares. O programa Affordable Care Act, mais conhecido como Obama Care, conta atualmente com 11,5 milhões de inscritos.

Na Itália, em um único dia, no bairro Zen, na periferia de Palermo (Sicília), 11 mil pessoas solicitaram a ajuda da prefeitura para a compra de alimentos. O governo nacional já anunciou, entre outras medidas, a distribuição de 400 milhões de euros de fundos para que cada prefeito possa distribuir vale compras aos moradores.

Em Nápoles, alguns moradores penduraram na janela uma cesta com uma corda e uma frase: “Quem pode deixe alimentos. Quem não pode, pegue”.

Cada país combate a sua própria batalha, consciente de que não há salvação sem a solidariedade alheia. A Itália, assim como a França e a Espanha, defendem urgentemente a necessidade de uma Europa unida no combate aos danos econômicos provocados pandemia, enquanto outros países da União Europeia tentam ganhar tempo antes de um pronunciamento definitivo. Em uma provocação, o ex-primeiro ministro italiano, Romano Prodi, lembrou que a Europa é uma das poucas âncoras da democracia mundial e que, sem solidariedade, países como a Holanda correm o risco de não encontrar compradores para as suas tulipas.

Enquanto isso, uma ajuda inesperada chega de um país bem menos potente do ponto de vista político e econômico: a Albânia. Trinta médicos albaneses chegaram ao norte da Itália e o seu premier declarou: “apesar de não sermos ricos, não podemos deixar de ser solidários com uma nação que nos ajudou muito no passado“.

O governo italiano prepara-se para prorrogar as medidas de restrição pelo menos até 18 de abril. Hoje, em sinal de luto nacional, as bandeiras tricolores foram expostas à meia-haste. Ao meio-dia, todos fizeram um minuto de silêncio para relembrar as 12.428 vítimas de coronavírus em solo italiano. As imagens dos caminhões do exército ficarão para sempre em nossas memórias.

No fundo, cada um de nós sabe que observar a grama do vizinho e comentar as suas falhas é um puro exercício retórico. Lascia il tempo che trova.

 

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