Entre horta e cozinha o renascimento depois do terremoto nos Abruzzo

Sempre fui uma adepta da filosofia de colecionar momentos e não objetos materiais. Se viajar é uma maneira de viver novas experiências, alargar o próprio horizonte e voltar para casa com lembranças, a melhor parte de tudo isso não são as paisagens que admiramos, mas os encontros inesperados, a empatia imediata com um desconhecido, os vínculos – mesmo temporários – que se criam com as pessoas que cruzam a nossa estrada.

As montanhas, os lagos ou as praias que visitamos são de domínio público, mas as emoções, as trocas de olhares, a cumplicidade ou a entrega de uma confissão entre aqueles que encontramos em uma viagem entram para a nossa esfera mais íntima e ali ficam enraizadas.

Associo cada lugar que visito a rostos e vozes e para mim L´Aquila e a sua província tem a fisionomia de um casal que não esquecerei tão cedo: Leonardo Visconti e Jaynie Covvl.

Em um de nossos passeios pelo Abruzzo tivemos a sorte de conhecer Maria DiCenzo, uma professora universitária italo-canadense que retorna a sua terra de origem durante o verão. Graças à ela, aquela que deveria ser a generosa indicação de um restaurante transformou-se em uma experiência para o paladar e a alma.

Como contei no post L´Aquila dez anos depois do terremoto. A capital dos Abruzzo entre passado e futuro, depois do sismo que provocou inúmeras vítimas essa região da Itália central poderia ser facilmente associada a uma vilã.

Suas montanhas corriam o risco de ser solitárias e os terrenos que produziam o ouro da cozinha – o açafrão – arrender-se. No entanto, os Abruzos são feitos de gente que desse cenário não se afasta e que arregaça as mangas para manter vivo o próprio território.

Leonardo Visconti e Jaynie Covvl são os proprietários de um restaurante, mas não um qualquer.  O local chamado Rinascimento e com lindo terraço panorâmico é a segundo lar do casal que perdeu a propria casa durante o terremoto.

Leonardo construiu o restaurante com as próprias mãos. Realizou o trabalho pesado de construção e também a sua rica decoração. Impossível não notar o teto recoberto de pinturas.

Fica fácil entender a atenção de Leonardo e Jaynie pela perfeição estética depois de entrar no “esqueleto” daquilo que restou de sua antiga casa. Um teto finemente decorado em pedaços. Paredes recobertas de rachaduras. Objetos de uso cotidiano ainda no chão. O relógio com os ponteiros parados. O segundo andar que desabou sobre o corpo de Jaynie enquanto dormia. “Quando entrei em casa achei que Jaynie não tivesse sobrevivido”, lembra emocionado.

Depois de vivenciar essa trágica experiência, ele conta que aprendeu na marra a identificar aquilo que chama de “a voz do terremoto”. A intuir imediatamente o início de um novo sismo.

Leonardo representa a quarta geração de uma família de pintores e decoradores. Assinou obras de restauro importantes em igrejas da Sardenha, mas colocou os andaimes e os pincéis em segundo plano para dedicar-se à paixão pela cozinha.

Rinascimento, assim como o flórido movimento cultural, artístico e científico italiano entre os séculos XV e XVI, é um laboratório de ideias e um exemplo de como ainda é possível viver sem a ditadura dos alimentos industrializados.

Em San Demetrio ne’ Vestini, província de L´Aquila, Leonardo e Jaynie cultivam uma horta de verduras, frutas e hortaliças, preparam o próprio pão, transformam ovos e farinha em massas artesanais, escolhem com rigor matemático os queijos de pastores locais e a carne de cordeiro aliementado com cevada e trigo, vão à caça (autorizada) de javalis,  servem vinhos orgânicos certificados slow food e sem a presença de sulfitos.

O amor pela cozinha emerge em cada prato. No pão caseiro. Na entrada a base de salame de javali, queijos de ovelhas, verduras frescas e ricota com açafrão. Nos sabores genuínos de massas artesanais com molhos a base de trufas negras ou zafferano local (açafrão). No vinho que acaricia o paladar. Nos doces preparados com as maças do quintal e o mosto da uva.

Para a família de Leonardo – incluindo os pais e o filho – Rinascimento não é só uma atividade comercial. É amor pela terra e um estilo de vida que – orgulhosos – esperam transmitir aos clientes do restaurante. Por esse motivo organizam periodicamente cursos de cozinha que duram um dia, um final de semana ou uma semana inteira. Durante a experiência os quais os hóspedes colhem verduras na horta, cozinham produtos cultivados a km 0, aprendem a preparar massas artesanais e, no início de setembro, realizam e engarrafam o molho de tomates que será usado o ano todo.

Peço uma foto recordação à família e a mãe de Leonardo, em vez de qualquer vaidade tipicamente feminina, insiste em sublinhar a beleza de uma abóbora presente na horta. “Guarda come è perfetta! Sembra quella di Cenerentola”. (Olhe como é perfeita. Parece aquela da Cinderela). Como não lhe dar razão? Se uma abóbora se transformou em carruagem, quem duvida que o restaurante será o motor da economia local e um dos tantos exemplos de renascimento no Abruzzo?

Rinascimento – Visconti Kitchen & Cooking Experience – Via Scura, 6728, San Demetrio ne´Vestini. Tel. 39 328 151 1491

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