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Entre os sabores e belezas da Ligúria, terra da Focaccia di Recco IGP e de vilarejos de beleza inesquecível

Esqueça o relógio. Se essa máxima vale para quando você visita a Itália, ela é quase obrigatória se viajar para a Ligúria, essa região encravada entre mar e montanhas que faz fronteira com a Toscana, o Piemonte, a Emilia-Romagna e a França.

Liguria, Recco, Camogli, Abbazia di San Fruttuoso

A maioria dos brasileiros associa a Ligúria à Gênova, às Cinque Terre ou ao glamour de Portofino, mas seria um desperdício não permitir que localidades menos populares dessa terra te seduzam e te demonstrem que são capazes de te enfeitiçar, aguçando os seus cinco sentidos. Dúvida? Então, leia só quantas riquezas encontrará em um itinerário de cerca 20 quilômetros.

Liguria, Recco, Camogli, Abbazia di San Fruttuoso

Dessa vez, o meu roteiro de viagem pela Ligúria inclui Recco, Camogli e a Abbazia di San Fruttuoso, na província de Gênova.

Recco, a maior cidade do chamado Golfo Paradiso, é uma meta gourmet, frequentada por amantes das excelências gastronômicas italianas.

O seu nome é sinônimo de focaccia, mas não uma qualquer. Ali se produz a Focaccia di Recco tutelada pela marca IGP (Indicazione Geografica Protetta), uma especialidade local a base de água, farinha e azeite e recheada com queijo cremoso.

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Não se trata da focaccia tradicional, que na Ligúria ocupa um lugar de destaque no café da manhã- mas de uma massa sem fermento e tão fininha que chega a parecer um lençol. Ela é recheada com queijo cremoso e assada por sete minutos em forno bem quente, a 270 graus. Isso garante a sua aparência dourada e a sua consistência crocante, em contraste com o recheio macio e derretido.

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Restaurante Manuelina em Recco

Aquela original, que segue rigorosamente as regras do Consorzio della Focaccia di Recco col Formaggio, se produz unicamente nas cidades de Recco, Sori, Avegno e Camogli, e como se diz por aqui na Itália, “va cotta e mangiata”. Uma expressão para indicar que deve ser devorada assim que sair do forno.

Assim como outras especialidades gastronômicas italianas vítimas do fenômeno do italian sounding, a Focaccia di Recco é imitada pelo mundo, mas a habilidade de mestres “focacciai” italianos é dificilmente replicável. Diariamente, eles produzem cerca de 30 mil focacce.

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Restaurante Da Ö Vittorio, em Recco

Para identificar a verdadeira Focaccia di Recco IGP, o produto é servido com uma “marca” que na verdade é uma hóstia produzida pela mesma empresa de origem calabresa que fornece o Vaticano, o Ostificio Domus.

O Consorzio della Focaccia di Recco col Formaggio é formado por 154 empresas e a sua responsável, Daniela Bernini, explica que o conflito entre a Rússia e Ucrânia, um dos maiores produtores de farinha de milho, tem incidido na alta dos preços das hóstias.

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A paternidade da Focaccia di Recco col Formaggio é atribuída à focacceria e restaurante Manuelina, fundado em Recco em 1885. A receita nasce como um “piatto povero” (prato pobre), de tradição caseira, mas em pouco tempo conquista paladares do mundo todo. Por lá passaram poetas como Gabriele d’Annunzio e Eugenio Montale.

O prato continua sendo servido no Manuelina, inclusive com outras variações, mas você também pode provar essa delícia – localmente chamada de fugassa co formaggio – em outros locais como o histórico Da Ö Vittorio, os restaurantes Alfredo, Vitturin 1860, e a padaria Tossini, só para citar alguns.

Para os gulosos de plantão, vale a pena saber que um território em comum entre Recco e Piacenza, cidade famosa pela produção de frios excelentes, é o Val Trebbia, vale banhada pelo rio homônimo que atravessa Gênova, e as províncias de Pavia e Piacenza. Quando Ernest Hemingway explorou essa parte da Itália, escreveu em seu diário. “hoje atravessei o vale mais belo do mundo.”

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A tradição piacentina de trabalhar artesanalmente a carne suína, ou se, preferir, a arte da “norcineria” é muito antiga. Documentos históricos demonstram que já em 202 a.C, Aníbal tenha festejado a vitória contra os romanos com carnes suínas salgadas e elaboradas nas colinas de Piacenza.

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Ainda hoje, os melhores frios como a Pancetta Piacentina DOP, o Salame Piacentino DOP e a Coppa Piacentina DOP são realizados manualmente e durante essa viagem pela Ligúria tive a chance de degustá-los como antipasto (entrada), antes de devorar a Focaccia di Recco.

De Recco até a Abbazia di San Fruttuoso

Para você entender melhor essa região, vale a pena fazer uma premissa. A Ligúria esta dividida em duas partes. A oeste fica a Riviera di Ponente, que se estende até a fronteira com a França. A leste encontra-se a Riviera di Levante, mais acidentata e que desce diretamente até o mar. Gênova, a capital da região, fica entre essas duas extensões da costa.

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Uma das principais atrações da Riviera di Levante, na Liguria, é a Abbazia di San Fruttuoso di Capodimonte, um mosteiro beneditino do século X, situado no Parco Naturale Regionale di Portofino, que no qual só é possível chegar a pé, percorrendo uma trilha a partir de Portofino, ou de barco, partindo de Recco, Camogli, Portofino, Santa Margherita Ligure, Rapallo, Sestri Levante, Lavagna, Chiavari ou Gênova.

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San Fruttuoso de Tarragona foi um dos mártires mais antigos da Peninsula Ibérica. Em 259 d.C, foi martirizado durante a perseguição aos cristãos e suas cinzas foram transportadas até os pés do promontório do Monte di Portofino. Em sua homenagem, sobre uma fonte de água, foi erguida uma abadia ocupada por monges até o século XV.

Em seguida, com o seu declínio, o complexo passou a ser uma propriedade da poderosa família do almirante Doria, que por quase três séculos ocupou-se da abadia, transferindo em seu interior os túmulos de seus familiares e construindo uma torre na vila de pescadores que abriga o local, decorada com o brasão da família, uma águia imperial.

Em 1983 o complexo foi doado pela família Doria ao FAI (Fondo Ambiente Italiano), fundação que tutela o patrimônio cultural, natural, artístico e arquitetônico italiano.

Participei de uma visita guiada no interior da Abbazia di San Fruttuoso e foi muito interessante descobrir curiosidades como o fato do mosteiro ter sido, por décadas, residência de famílias de pescadores, ou os vestígios arqueológicos de sua antiga igreja medieval.

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No tablet, foto de antiga casa de pescadores no interior do mosteiro

Outro detalhe que você não pode deixar de notar no interior da igreja de San Fruttuoso é a replica do chamado Cristo degli Abissi, uma estátua de bronze que se encontra no fundo do mar, a 17 metros de profundidade, em homenagem a suas vítimas. A ideia foi do mergulhador italiano Duilio Marcante.

A pequena praia na baía de San Fruttuoso, circundada pelo mar e pelas montanhas, é um dos cenários naturais mais belos da Ligúria. O espaço, assim como as outras praias da região, não é muito amplo e para caminhar sobre as pedrinhas é melhor usar uma sandália, mas você não esquecera tão cedo a cor e a limpidez de suas águas cristalinas.

Camogli, uma joia da Liguria 

Provavelmente, o nome Camogli não soa muito familiar para os brasileiros, mas esse vilarejo da já foi “descoberto” por outros estrangeiros em busca da fascinante atmosfera da Ligúria, mas com ares menos turísticos se comparados àqueles de metas como Cinque Terre.

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Considerando a distância razoável, muitos milaneses também escolheram Camogli como a sua praia preferida no verão.

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De olho nesse novo target, Camogli inaugurou recentemente dois hotéis cinco estrelas, o Sublimis Boutique Hotel, só para adultos, e o Hotel Carrick Camogli, ambos concorrentes de outra estrutura de luxo, o Spendido, Belmond Hotel em Portofino.

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Os italianos definem Camogli como “um borgo gioiello”, um vilarejo que é uma joia. Passeando entre seus cantinhos mais pitorescos, basta pouco para descobrir por quê. Em Camogli é evidente tudo aquilo que, no passado, transformou a Ligúria em um potente império comercial que chegou a ofuscar Veneza. Não por acaso, ela também é conhecida como “a cidade dos mil veleiros brancos”.

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Imagine casas de cor pastel decoradas com a refinada técnica trompe-l’oeil, um mar cristalino, um castelo medieval chamado Castello della Dragonara, e uma igreja tão rica que você jamais imaginaria encontrar em uma vila pesqueira. É a Basilica di Santa Assunta, erguida em 1145. Seu teto é divino e em seu exterior não deixe de notar a pavimentação com mosaicos e as escadas de mármore.

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Descendo as escadas e caminhando rumo ao pequeno porto ou à praia você cruzará com “forni” (padarias) que assam focaccia, barcos de diversas tonalidades que lembram as cores de um filme de Pedro Almodóvar, laboratórios de artesãos e restaurantes que exalam o perfume de peixe frito. Também vale a pena saber que no segundo domingo de maio Camogli celebra a benção dos peixes fritando sardinhas em uma panela gigantesca, de quatro metros de diâmetro.

Camogli também é o lugar ideal para um aperitivo com vista para o mar. Se você aprecia esse ritual italiano, em um final de tarde, saboreie um drink no Il Barcollo (Via Garibaldi).

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Aperitivo em Camogli

Sabores da Ligúria

Uma viagem até a Ligúria não é completa sem uma verdadeira imersão gastronômica. Lembra que no início desse artigo disse para você deixar de lado o relógio?

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Da Ö Vittorio

Pois bem, meu último dia na região foi um deleite para o paladar. Primeiro, tive o privilégio de assistir no histórico restaurante Da Ö Vittorio uma aula de prepararão de pesto e de trofie, o macarrão que geralmente acompanha esse molho.

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Impossível não ficar encantada com a habilidade de chefs que preparam o presto usando o tradicional mortaio (socador) de mármore e com as manualidade de quem realiza as trofie com poucos movimentos.

O segredo é acrescentar as folhas de manjericão gradualmente para triturá-las com mais facilidade. Em seguida, acrescentar o algo, o sal grosso (que ajuda o atrito), o queijo e, enfim, o azeite. Durante a aula o cozinheiro até brincou, ironizando sobre o fato dos moradores da Ligúria serem considerados supostamente avaros.

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Ele disse que o pesto é a receita ideal nesse período de crise do gás, já que não precisa ir ao fogo, e que as trofie não levam ovos na massa, então são mais econômicas. 

O almoço continuou com os Salumi DOP Piacentini, a Focaccia di Recco IGP e, em seguida, um prato quase em extinção: os chamados mandilli de sea, em dialeto. Literalmente, lenços de seda, que são sfoglie ou tiras de massa extremamente finas, cozidas por poucos segundos e acompanhadas por pesto. Se você e amante das massas italianas recheadas, quando estiver na Ligúria não deixe de provar os pansotti com molho de nozes.

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Outros pratos da tradição que adoro são o Cappon Magro, uma salada ligeiramente morna e delicada a base de frutos do mar e a Torta Pasqualina, recheada com ricota, ovos e espinafre.

Os vinhos na Ligúria também são um capítulo a parte. Costumo definir a viticultura dessa região “heróica” porque não é nada simples cultivar videiras em penhascos íngremes. O Vermentino aqui tem a sua máxima expressão.

Para finalizar a refeição, procure pelos licores artesanais com os sabores da Ligúria fabricados pelo Opificio Clandestino degli In-fusi, de Andrea Bruzzone.

Para chegar em Recco: Eu fui de trem Freccia Bianca até Chiavari e de lá peguei um segundo trem, dessa vez regional, até Recco. No total, quase cinco horas de viagem. Se puder, alugue um carro com desconto no banner da RentCars aqui na lateral direita do blog para facilitar os seus deslocamentos ou pegue avião até Genova e de lá siga de carro até Recco.
Abbazia di san Fruttuoso: Reserve o seu ingresso no site do FAI (Fondo Ambiente Italiano). 
Precisando de assessoria para organizar a sua viagem pela Ligúria fale comigo enviando e-mail para postitalyblog@gmail.com . Será um prazer ajudá-lo!

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